sexta-feira, 5 de maio de 2023

A fraude à cota de gênero, que pode ser apurada mediante AIJE, enseja a cassação de todas as candidaturas beneficiadas pela fraude

 

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal. Juiz Eleitoral do pleno do TRE/AM (2020-2022). Membro da ABRADEP


Robério Moreira Borges

Analista Judiciário do TRE/AM

 

Cota de gênero

A cota de gênero, atualmente prevista no art. 10, §3º, da Lei nº 9.504/97, consiste na obrigação de o partido reservar, pelo menos, 30% de candidaturas aos cargos proporcionais para cada sexo (masculino ou feminino). Veja:

Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do número de lugares a preencher mais 1 (um).

(...)

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

 

Como funciona, na prática

Para entender como funciona essa cota na prática, vejamos a seguinte situação hipotética, com números exatos e sem sobras, para facilitar o entendimento:

Em um pequeno município do interior, o partido Alfa realizou convenção partidária para escolha de seus candidatos. Nessa convenção, apresentaram-se cinco pré-candidatos para o cargo de vereador, sendo quatro do sexo masculino (candidatos A, B, C e D) e uma do sexo feminino (candidata X).

Nesse exemplo, indaga-se: seria possível o registro desses candidatos?

NÃO. Isso porque o percentual de candidaturas femininas, neste caso, corresponderia a apenas 20% do total de candidatos (1 de 5 candidaturas).

Neste cenário, restaria ao partido duas possibilidades para satisfazer a exigência legal:

1) registrar mais uma candidatura feminina; ou

2) deixar de registrar duas candidaturas masculinas. 

 

Adotando qualquer uma dessas duas possibilidades, o percentual ficaria acima do mínimo de 30%.

Acontece que, por ser uma eleição muito disputada, o partido Alfa queria lançar o maior número de candidaturas possível, pois dependeria de todos esses votos para elevar o quociente partidário e assim conseguir um maior número de cadeiras.

Como solução, o Partido Alfa resolveu registrar a candidata Y, esposa de um dos outros candidatos, que, embora filiada, até então nunca havia se envolvido na política, nem tinha pretensões de se candidatar ou fazer campanha eleitoral. A candidatura somente foi formalizada para atender o percentual mínimo de 30% da cota de gênero.

O partido então submeteu o pedido de registro de candidatura ao juiz eleitoral, lembrando que a candidata Y foi registrada apenas para satisfazer o número mínimo exigido pela cota de gênero.

Esse registro, na prática, funciona da seguinte forma: o partido encaminha o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários – DRAP, no qual o juiz analisa a regularidade do partido, da convenção partidária e dos demais requisitos legais, inclusive a cota de gênero. Caso deferido o DRAP, o juiz passa a analisar individualmente os requerimentos de registro - RRC vinculados a esse DRAP.

Como o DRAP atendia a cota de gênero, pois foram indicadas quatro candidaturas masculinas (Candidatos A, B, C e D) e duas femininas (Candidatas X e Y), o pedido foi deferido. Em seguida, foram também deferidas todas as candidaturas do partido.

Deu-se, então, início à campanha eleitoral.

Após o pleito, em uma disputa por nove cadeiras, computou-se na circunscrição eleitoral um total de nove mil votos válidos.

O partido Alfa obteve o seguinte desempenho:

CANDIDATO

NÚMERO DE VOTOS

CANDIDATO A

1.000

CANDIDATA X

500

CANDIDATO B

250

CANDIDATO C

150

CANDIDATO D

100

CANDIDATA Y

0

 

TOTAL DE VOTOS DO PARTIDO: 2.000 votos

 

Como se trata de eleição para o cargo de vereador, o número de cadeiras obtido pelo partido deve ser calculado segundo o sistema proporcional.

Nesse sistema, calcula-se inicialmente o quociente eleitoral, na forma do art. 106, do Código Eleitoral:

Art. 106. Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um, se superior.

 

No nosso exemplo, o quociente eleitoral será obtido a partir da divisão entre o número de votos válidos (9 mil) pelo número de cadeiras (9 cadeiras).  No nosso exemplo, portanto, o quociente eleitoral seria 1.000.

Dizendo de uma forma bem simples, pode-se afirmar que, nesse exemplo, cada cadeira em disputa corresponderia a 1.000 votos. Esse é o quociente eleitoral.

Em seguida, passamos para o cálculo do quociente partidário, ou seja, a quantidade de cadeiras obtidas pelo partido. O cálculo é feito na forma do art. 107, do Código Eleitoral:

Art. 107. Determina-se para cada partido o quociente partidário dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda, desprezada a fração.    (Redação dada pela Lei nº14.211, de 2021)

 

No nosso exemplo, vamos pegar a votação total obtida pelo partido, que, no nosso caso, foi 2.000 votos, e dividi-lo pelo quociente eleitoral, que corresponde ao número de votos de cada cadeira (1.000).

O quociente partidário do Partido Alfa, portanto, é 2 (2.000 dividido por 1.000). Assim, pelo quociente partidário, o Partido Alfa conquistou duas cadeiras.

Logo, estarão eleitos os dois candidatos mais votados desse partido, quais sejam: Candidato A e a Candidata X, figurando como suplentes os demais.

Note-se, ainda, que a candidata Y, como já se esperava, não obteve nenhum voto. No entanto, sua candidatura possibilitou o registro de outras candidaturas masculinas que contribuíram para elevação do quociente partidário e permitiram a obtenção da segunda cadeira pelo partido.

 

AIJE proposta por partido adversário

O Partido Beta, adversário, percebeu que a candidata Y não tinha feito campanha e sequer obteve o próprio voto.

Por essa razão, após a proclamação dos resultados e antes da diplomação, o Partido Beta ingressou com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE contra o Partido Alfa, argumentando que o partido investigado teria fraudado a cota de gênero.

Nessa ação, o Partido Beta alegou e comprovou que a candidata Y:

1) não realizou nenhum ato de campanha;

2) não obteve nenhum voto;

3) apresentou prestação de contas zerada, ou seja, sem registro de nenhuma despesa;

4) não confeccionou propaganda eleitoral;

5) tinha parentesco com candidato do próprio partido, e;

6) publicou postagens em sua rede social fazendo propaganda para outro candidato que, em tese, seria seu adversário.

 

O autor requereu a procedência da AIJE para que fosse reconhecida a fraude e, em consequência, fossem cassadas todas as candidaturas da chapa, bem como aplicada a sanção de inelegibilidade, nos termos do art. 22, XIV, da Lei Complementar 64/90.

 

Inicialmente, indaga-se: é possível investigar fraude à cota de gênero por meio da AIJE? Essa AIJE teria chances de êxito?

SIM.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) admite que a fraude de gênero seja apurada tanto em sede de AIJE, como também em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME:

1. O Tribunal Superior Eleitoral firmou o entendimento, em recente julgado, de que é possível a apuração de fraude em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), por constituir tipo de abuso de poder, cujas consequências são a cassação dos mandatos dos eleitos e dos diplomas dos suplentes e não eleitos e a declaração de inelegibilidade dos diretamente envolvidos na fraude. (TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 74789 - GEMINIANO – PI - Acórdão de 04/02/2020 - Relator(a) Min. Edson Fachin - Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 161, Data 13/08/2020, Página 218-225)

 

É firme a Jurisprudência desta CORTE SUPERIOR ELEITORAL no sentido de admitir a propositura de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo para apurar violação à cota de gênero.

TSE REspEl - Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 190 - GOUVELÂNDIA – GO - Acórdão de 16/12/2021 - Relator(a) Min. Alexandre de Moraes)

 

Também de acordo com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a AIJE teria chances de êxito, pois admite-se o reconhecimento da fraude de gênero quando comprovadas circunstâncias que, somadas, permitem concluir que houve registro de candidaturas inviáveis, com único propósito de atender formalmente a cota de gênero.

Vejamos um julgado muito parecido com o caso em análise:

3. No caso, a moldura fática do acórdão Regional, delineada a partir de conteúdo probatório contundente (documentos, oitiva de testemunhas e o depoimento pessoal das requeridas), é incontroverso que: (i) 4 (quatro) das cinco candidatas não obtiveram nenhum voto (percentual que corresponde a 80% das candidaturas femininas registradas); (ii) não realizaram nenhum ato de campanha; (iii) apresentaram prestações de contas zeradas; (iv) não tiveram os nomes mencionados nos atos de propaganda eleitoral dos candidatos da coligação e (v) há parentesco entre uma delas e candidato da Coligação. Diante do quadro retratado, está bastante claro que as candidatas foram cooptadas para compor a cota mínima legal.

(TSE - 0000001-90.2017.6.09.0046 - REspEl - Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 190 - GOUVELÂNDIA – GO - Acórdão de 16/12/2021 - Rel. Min. Alexandre de Moraes – Publicação: 04/02/2022)

 

Superada a primeira indagação, vejamos o segundo questionamento: qual seria a consequência da procedência da AIJE?

De acordo com a jurisprudência do TSE, o reconhecimento da fraude de gênero implica na desconstituição do registro e anulação dos votos atribuídos a todos os candidatos do partido. Isso significa que o Partido Alfa perderá as duas cadeiras que conquistou.

Segundo entendimento do TSE, o registro de candidaturas fictícias, unicamente para atender a cota de gênero, contrapõe-se às finalidades da política afirmativa, propiciando uma falsa competição pelo voto popular. Por essa razão, devem ser cassados os registros ou diplomas de todos os candidatos que compuseram a chapa, independente de prova da sua participação ou anuência no evento fraudulento.

Confira:

8. Caracterizada a fraude e, por conseguinte, comprometida a disputa, não se requer, para fim de perda de diploma de todos os candidatos beneficiários que compuseram as coligações, prova inconteste de sua participação ou anuência, aspecto subjetivo que se revela imprescindível apenas para impor a eles inelegibilidade para eleições futuras. Precedentes.

9. Indeferir apenas as candidaturas fraudulentas e as menos votadas (feito o recálculo da cota), preservando-se as que obtiveram maior número de votos, ensejaria inadmissível brecha para o registro de "laranjas", com verdadeiro incentivo a se "correr o risco", por inexistir efeito prático desfavorável.

10. O registro das candidaturas fraudulentas possibilitou maior número de homens na disputa, cuja soma de votos, por sua vez, contabilizou-se para as respectivas alianças, culminando em quociente partidário favorável a elas (art. 107 do Código Eleitoral), que puderam então registrar e eleger mais candidatos.

11. O círculo vicioso não se afasta com a glosa apenas parcial, pois a negativa dos registros após a data do pleito implica o aproveitamento dos votos em favor das legendas (art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral), evidenciando-se, mais uma vez, o inquestionável benefício auferido com a fraude.

12. A adoção de critérios diversos ocasionaria casuísmo incompatível com o regime democrático.

(TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 19392 - VALENÇA DO PIAUÍ – PI - Acórdão de 17/09/2019 - Relator(a) Min. Jorge Mussi)

 

Atualmente, esse entendimento encontra-se materializado na Resolução TSE 23.609/2019:

Art. 20. Os pedidos de registro serão compostos pelos seguintes formulários gerados pelo CANDex:

(...)

§ 5º A conclusão, nas ações referidas no § 1º deste artigo, pela utilização de candidaturas femininas fictícias, acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou mandatos de todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência, com a consequente retotalização dos resultados e, se a anulação atingir mais de 50% (cinquenta por cento) dos votos da eleição proporcional, a convocação de novas eleições. (Incluído pela Resolução nº 23.675/2021)

 

Mas um dos eleitos é a Candidata X. Seria possível cassar uma candidatura do sexo feminino por fraude à cota de gênero?

SIM. Como a fraude à cota de gênero atinge o DRAP, que precede o registro de candidatura, são atingidos todos os registros ou diploma a ele (DRAP) vinculados, independente do sexo do candidato.

 

O debate acima explicado foi levado ao STF

Conforme já dito, o entendimento acima explicado prevalece há algum tempo no TSE. Alguns partidos, no entanto, não concordaram com o fato de as sanções alcançarem todos os candidatos da chapa. Para esses partidos, a sanção deveria recair unicamente sobre as candidaturas fictícias.

Transportando parte dessas críticas ao nosso caso hipotético, podemos citar:

- O Candidato A obteve votação expressiva e sua eleição não dependeu dos votos proporcionados pela Candidata Y;

- Com o reconhecimento da fraude, uma candidata acabou por perder o cargo conquistado, circunstância que, segundo esses críticos, estaria em conflito com as finalidades da política afirmativa;

- Não seria justo que os demais candidatos fossem punidos sem prova de que contribuíram ou anuíram com a prática ilegal.

 

Em razão disso, um desses partidos (Partido Solidariedade – SD) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a interpretação dada pelo TSE ao art. 10, §3º, da Lei 9.504/97 c/c art. 22, XIV, da CF/88.

Queria que o STF, através das técnicas de “interpretação conforme a Constituição” e “inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”, assentasse que, nas hipóteses de reconhecimento de fraude às candidaturas femininas em sede de AIJE, ocorresse apenas a cassação dos responsáveis pela prática abusiva e a punição da agremiação que selecionou candidatos laranjas para compor sua chapa, isentando-se de qualquer responsabilização as candidatas e candidatos eleitos que não tenham contribuído ou consentido para a consecução do abuso que conduzisse à cassação de todos os integrantes da chapa.

Como fundamento, entre outros, alegou que a cassação de todas as candidaturas do partido envolvido na fraude acabaria por afetar outras candidatas que tenham concorrido de boa fé e que não tivessem participado, de forma comissiva ou omissiva, para a prática do ato.

Assim, o entendimento produziria um resultado concreto que, ao invés de promover, enfraqueceria a ação afirmativa de fomento à participação política feminina (incidiria a teoria do impacto desproporcional).

Na visão do partido autor da ADI, seria um contrassenso adotar postura rigorosa de proteção da política de cotas e retirar do certame candidatas eleitas que compuseram as coligações, sem demonstração de sua efetiva participação ou anuência na fraude.

Para o partido requerente, a jurisprudência do TSE estaria criando uma hipótese de responsabilidade objetiva na seara eleitoral, o que seria vedado pela Constituição Federal.

Representaria, ainda, ofensa ao princípio da proporcionalidade, porquanto as sanções ultrapassariam as candidaturas envolvidas na fraude.

Alegou, ainda, que os Demonstrativos de Regularidade de Atos Partidários - DRAP, documento no qual os partidos formalizam as candidaturas e demonstram cumprimento das cotas de gênero, são assinados somente pelos presidentes dos partidos, sem interferência dos candidatos.

Dessa forma, a atual postura do TSE repercutiria indevidamente na esfera jurídica dos candidatos, pois criaria, para eles, a obrigação de fiscalizar todas as escolhas de candidaturas de seu partido para tentar descobrir se as cotas de gênero estão sendo cumpridas, além da obrigação de fiscalizar as candidaturas femininas dos demais partidos, para saber se elas estão fazendo campanha eleitoral.

Esse ônus faria com que houvesse um completo desincentivo à participação política, agravando ainda mais o cenário de sub-representação política das mulheres.

Assim, em conclusão, defendeu o partido que as sanções deveriam recair somente sobre as candidaturas fictícias.

No nosso exemplo acima mencionado, caso prevalecesse a tese do partido autor da ADI, a sanção recairia unicamente sobre a Candidata Y e sobre o partido, mantendo-se hígidas as demais candidaturas e cadeiras conquistadas.

 

O Supremo Tribunal Federal concordou com esses argumentos? O pedido na ADI foi julgado procedente?

NÃO.

Inicialmente, o STF destacou que, mesmo com as políticas afirmativas até então implementadas, o cenário de desequilíbrio entre homens e mulheres ainda se mostra muito acentuado.

De acordo com a Suprema Corte, fraudar a cota de gênero – consubstanciada no lançamento fictício de candidaturas femininas – materializa conduta transgressora da cidadania (art. 1º, II, da CF/88), do pluralismo político (art. 1º, V, da CF/88), da isonomia (art. 5º, I, da CF/88), além de, ironicamente, subverter uma política pública criada pelos próprios membros (eleitos) das agremiações partidárias.

A fraude à cota de gênero é ato de extrema gravidade pois tem efeito drástico e perverso na legitimidade, na normalidade e na lisura das eleições e na formação da vontade do eleitorado, isso porque permite aos partidos lançar um número maior de candidatos sem o percentual mínimo estipulado em lei, elevando assim o quociente partidário e, consequentemente, o número de cadeiras alcançadas.

Por essa razão, a exclusão apenas das candidaturas fraudulentas, como pleiteia o partido, implicaria no aumento do número de candidaturas masculinas efetivas. Em consequência, a sanção restaria esvaziada, pois a mera anulação dos votos dessas candidaturas fictícias – que receberam poucos ou nenhum voto – não teria impacto significativo no quociente partidário, de forma que o partido continuaria se beneficiando da fraude.

Ademais, a anulação de todos os votos atribuídos ao partido no qual se verificou à fraude se mostra proporcional em relação à dinâmica do processo eleitoral, pois a análise da cota de gênero é feita no DRAP, que precede o registro de candidatura. 

Nesse passo, se um partido submete um DRAP sem observar a cota de gênero, a consequência será o indeferimento desse DRAP, prejudicando as candidaturas a ele vinculadas. Logo, se reconhecido que uma candidatura feminina registrada era fictícia, ou seja, nasceu irregular, a consequência deve necessariamente ser a mesma, ou seja, a desconstituição do DRAP e consequentemente das candidaturas a ele vinculadas.

Entender de modo diverso seria dar tratamento mais benéfico ao lançamento das candidaturas fictícias, de modo a incentivar práticas ilegais e fraudulentas.

Demais disso, o acolhimento da pretensão do partido acarretaria o esvaziamento da sanção imposta e os partidos deixariam de ter a expectativa de real e efetiva punição.

Assim, segundo o STF, a regra perderia seu caráter transformador de condutas, pois, dispor sobre cotas de gênero, mas não aplicar a punição a todos os beneficiados, tornaria inócua e sem razão de ser a legislação.

Quanto ao papel dos demais candidatos da coligação, o STF consignou que a eles compete, juntamente com os demais integrantes e representantes, monitorar, controlar e fiscalizar os atos empreendidos por suas agremiações, principalmente no âmbito das eleições proporcionais, pois os atos partidários beneficiam a todos, de forma que não há que se falar em responsabilidade objetiva.

Por fim, o acórdão assentou que a teoria do impacto desproporcional não teria aplicabilidade à hipótese, dada a necessidade de punição rigorosa das condutas fraudulentas e o imperativo legal de cassação de registro ou de diploma de todos os beneficiados.

Com esses argumentos, o STF concluiu ser constitucional a regra prevista no art. 20, § 5º, Resolução/TSE 23.609/2019, incluído pela Resolução/TSE 23.675/2021, que estabelece, de modo claro e inequívoco, que, a constatação de fraude às cotas de gênero, acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou mandatos de todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência.

 

Em suma:

É constitucional o entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) segundo o qual é:

i) cabível a utilização da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) para apuração de fraude à cota de gênero; e

ii) imperativa a cassação do registro ou do diploma de todos os candidatos beneficiados por essa fraude.

STF. Plenário. ADI 6338/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 03/04/2023 (Info 1089).

 

DOD Plus – teoria do impacto desproporcional

O julgado acima menciona a teoria do impacto desproporcional. O que vem a ser isso?

Este tema está relacionado com direito da antidiscriminação e quem o explica de forma mais didática possível é o Prof. Filippe Augusto dos Santos Nascimento:

“A Teoria do Impacto Desproporcional está atrelada aos conceitos de discriminação de fato e discriminação por ações neutras:

i) Discriminação de Fato: ocorre quando a realidade é desigual e os atores envolvidos poderiam agir para encerrar a desigualdade, mas, por omissão, mantém a desigualdade de fato.

ii) Discriminação por Ações Neutras: acontece quando há uma norma aparentemente neutra, que, na sua aplicação, efetivamente irá discriminar uma pessoa ou grupo, ou seja, a mera aplicação da norma leva à discriminação.

 

No bojo da ADI nº 4424, sobre a desnecessidade de representação da vítima na Lei Maria da Penha, o Ministério Público Federal (MPF), em peça subscrita pela Ex-Procuradora Nacional dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, entendeu que a situação de discriminação indireta é correlata com a Teoria do Impacto Desproporcional.

 

A Teoria do Impacto Desproporcional foi citada no voto do min. Joaquim Barbosa, na mesma ADI nº 4424:

‘que tal teoria (do impacto desproporcional) consiste na ideia de que toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas’.

 

O leading case histórico sobre a teoria do impacto desproporcional é o caso Griggs versus Duke Power Company. O caso trata, basicamente, de uma class action, ação movida por uma pessoa representando várias, típica do direito norte-americano, em que Willie Griggs ajuizou uma pretensão em favor dos empregados negros da empresa Duke Power Company.

O autor questionava, em síntese, a política de promoção da empresa que exigia dos empregados diploma de conclusão do ensino médio e o alcance de uma pontuação mínima em 02 (dois) testes de aptidão. Sustentava o autor que a exigência da empresa violava o Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964, ao se impedir, na prática, o acesso dos negros aos melhores postos de trabalho da empresa.

Ao analisar esse caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos firmou o posicionamento de que o Titulo VII da Lei dos Direitos Civis buscava alcançar não apenas a igualdade formal, mas também a igualdade material traduzida pela igualdade de oportunidades de trabalho.

Sendo assim, a Suprema Corte americana asseverou que os testes aplicados pela empresa impediam que um número significativo e desproporcional de empregados negros tivesse acesso aos departamentos mais bem remunerados da empresa, dado que no contexto daquele período, os negros, dado anos e mais anos de segregação e acesso a piores escolas, tinham, na prática, piores condições de estudo.

Dessa maneira, concluiu-se que nem a exigência de graduação no ensino médio, nem a realização dos 02 (dois) testes de aptidão foram direcionadas ou tiveram a intenção de medir a habilidade dos empregados de aprender ou de executar um determinado serviço. Ao contrário, a intenção da empresa, por meio de exigências aparentemente neutras e razoáveis, na prática, redundava em discriminação, pois o único intuito da empresa era salvaguardar sua política de dar preferência aos brancos para a ocupação dos melhores postos de trabalho.” (Manual de Humanística. Salvador: Juspodivm, 2023, p. 735-736)

 

 

 

 


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