domingo, 7 de maio de 2023

É incompatível com a Constituição Federal a previsão da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior (art. 295, VII, do CPP)

 

A situação concreta foi a seguinte:

O Código de Processo Penal prevê, em seu art. 295, que determinadas pessoas teriam direito à prisão especial:

Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:

I - os ministros de Estado;

II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia;

III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;

IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito";

V os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

VI - os magistrados;

VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;

VIII - os ministros de confissão religiosa;

IX - os ministros do Tribunal de Contas;

X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;

XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos.

 

Prisão especial

O instituto da prisão especial, tal como previsto no art. 295 do CPP, consiste na prerrogativa conferida a determinadas pessoas de, quando submetidas à prisão processual, serem recolhidas em recintos diferentes daqueles destinados aos presos em geral.

Não se trata de uma nova modalidade de prisão cautelar, mas apenas uma forma diferenciada de recolhimento da pessoa presa provisoriamente, em quartéis ou estabelecimentos prisionais destacados, até a superveniência do trânsito em julgado da condenação penal.

 

Quais as regras que o CPP preveem para a prisão especial

A prisão especial consiste no recolhimento do preso em local distinto da prisão comum (art. 295, § 1º).

Não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento (art. 295, § 2º).

A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana (art. 295, § 3º).

O preso especial não será transportado juntamente com o preso comum (art. 295, § 4º).

Os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos do preso (art. 295, § 5º).

 

ADPF

O Procurador-Geral da República ingressou com ADPF contra o inciso VII do art. 295 do CPP:

Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:

(...)

VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;

 

Muita atenção com isso. Vou repetir. O art. 295 possui diversas hipóteses de prisão especial. O PGR questionou unicamente a previsão do inciso VII (prisão especial dos portadores de diploma de nível superior).

Para o PGR essa hipótese não teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988 porque violaria o princípio republicano, o princípio da isonomia e a dignidade da pessoa humana.

O autor defendeu que não seria possível conceder prisão especial com base unicamente no grau de instrução acadêmica do preso.

 

Assiste razão ao PGR? O pedido formulado na ADPF foi julgado procedente?

SIM.

É incompatível com a Constituição Federal — por ofensa ao princípio da isonomia (arts. 3º, IV; e 5º, caput, CF/88) — a previsão contida no inciso VII do art. 295 do CPP que concede o direito a prisão especial, até decisão penal definitiva, a pessoas com diploma de ensino superior.

STF. Plenário. ADPF 334/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 03/04/2023 (Info 1089).

 

Princípio da igualdade não impede o tratamento desigual dos casos desiguais

Como se sabe, a Constituição Federal adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico.

Diante disso, o princípio da igualdade se volta contra as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, mas não impede o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, como exigência própria do conceito de Justiça.

Somente se tem por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, pois a atuação do Poder Público tem por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

 

Constituição Federal legitima um tratamento diferenciado para determinados presos que podem estar expostos a um perigo maior no cárcere

Em relação ao recolhimento de pessoas na prisão, seja de natureza cautelar ou definitiva, não se desconhece que o Estado é responsável por garantir a dignidade, tutela e bem-estar físico e psíquico de todos os presos, indistintamente.

Também não se admite que o Estado proteja determinadas pessoas ao mesmo tempo em que se omite em relação ao grande contingente de custodiados pelo sistema carcerário, devendo garantir condições adequadas e dignas de encarceramento como um dever estatal em relação a todos, e não a uma categoria específica de pessoas.

Ocorre, no entanto, que a própria Constituição Federal legitima um tratamento diferenciado, por parte do Poder Público, na forma de recolhimento de determinados presos, tendo em consideração circunstâncias específicas que justificam essa consideração excepcional (de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado):

Art. 5º. (...)

XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

 

Além disso, o art. 300 do CPP e o art. 84 da LEP, estipulam que presos provisórios devem ser segregados dos presos definitivos e encarcerados de acordo com a natureza da infração penal imputada:

CPP

Art. 300. As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

LEP

Art. 84. O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado.

 

A segregação do ambiente carcerário comum, nesses casos, visa a atender a determinadas circunstâncias pessoais que colocam seus beneficiários em situação de maior e mais gravosa exposição ao convívio geral no cárcere, evitando, por exemplo, qualquer violência decorrente da convivência de homens e mulheres na mesma prisão; a influência deletéria de presos definitivos contra pessoas que, pela presunção de inocência, não se confirmaram criminosas; de autores de crimes mais graves sobre os demais presos; ou, ainda, daqueles em relação a crianças e adolescentes que cometeram atos infracionais.

Em todas essas hipóteses, busca-se conferir maior proteção à integridade física e moral de presos que, por suas características excepcionais, se encontram em situação mais vulnerável, ou seja, substancialmente desigual, e que, por isso mesmo, merecem um tratamento também desigual por parte do Poder Público.

 

Existem hipóteses de prisão especial também no Direito Internacional

Observa-se, aliás, que a previsão de um modelo de prisão especial – que destina estabelecimentos diversos a determinados presos – também encontra pleno respaldo no Direito Internacional.

Nesse sentido, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, também conhecidas como Regras de Mandela (Resolução 70/175 em 2015), em que a Assembleia Geral da ONU promulga condições essenciais a serem cumpridas pelos Estados no tratamento de pessoas encarceradas, entre elas a imparcialidade, não devendo proceder com “nenhuma discriminação em razão da raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, patrimônio, nascimento ou outra condição” (Regra 2).

Atendendo, contudo, a um critério de justiça e igualdade material, as Regras de Mandela explicitam alguns critérios válidos e plenamente legítimos de tratamento diferenciado entre detentos em condições desiguais, in verbis:

Regra 11

As diferentes categorias de reclusos devem ser mantidas em estabelecimentos prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento prisional, tendo em consideração o respetivo sexo e idade, antecedentes criminais, razões da detenção e medidas necessárias a aplicar. Assim:

(a) Homens e mulheres devem ficar detidos em estabelecimentos separados; nos estabelecimentos que recebam homens e mulheres, todos os locais destinados às mulheres devem ser completamente separados;

(b) Presos preventivos devem ser mantidos separados dos condenados;

(c) Pessoas detidas por dívidas ou outros reclusos do foro civil devem ser mantidos separados dos reclusos do foro criminal;

(d) Os jovens reclusos devem ser mantidos separados dos adultos.

 

Regra 93

1. As finalidades da classificação devem ser:

(a) De separar os reclusos que, pelo seu passado criminal ou pela sua personalidade, possam vir a exercer uma influência negativa sobre os outros reclusos;

(b) De repartir os reclusos por grupos tendo em vista facilitar o seu tratamento para a sua reinserção social.

2. Há que dispor, na medida do possível, de estabelecimentos separados ou de secções distintas dentro de um estabelecimento para o tratamento das diferentes categorias de reclusos.

 

Regra 111

1. Os detidos ou presos em virtude de lhes ser imputada a prática de uma infração penal, quer estejam detidos sob custódia da polícia, quer num estabelecimento prisional, mas que ainda não foram julgados e condenados, são doravante designados nestas Regras por “detidos preventivamente”.

2. As pessoas detidas preventivamente presumem-se inocentes e como tal devem ser tratadas.

3. Estes detidos devem beneficiar de um regime especial cujos elementos essenciais se discriminam nestas Regras, sem prejuízo das disposições legais sobre a proteção da liberdade individual ou que estabelecem os trâmites a ser observados em relação a pessoas detidas preventivamente.

 

Regra 112

1. As pessoas detidas preventivamente devem ser mantidas separadas dos reclusos condenados.

2. Os jovens detidos preventivamente devem ser mantidos separados dos adultos e ser, em princípio, detidos em estabelecimentos prisionais separados.

 

Também o Pacto Internacional de Direito Humanos, em seu art. 10, ressalta expressamente a necessidade de se separarem presos provisórios de condenados definitivamente e os jovens dos adultos:

ARTIGO 10

1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.

2. a) As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoa não-condenada.

b) As pessoas processadas, jovens, deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível.

3. O regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabilitação moral dos prisioneiros. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica.

 

No âmbito da União Europeia, o tema é regido pelas Regras Penitenciárias Europeias de 1987, posteriormente regulamentadas pela Recomendação Rec (2006) do Comitê de Ministros, que dispõem, entre outros temas, acerca dos “ reclusos preventivos”.

A legislação europeia se aproxima da diretriz adotada pela ONU, prevendo normas que versam sobre a separação entre presos cautelares e condenados.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, igualmente, enfatiza o necessário tratamento distinto entre pessoas presas provisoriamente, fazendo menção a esse respeito nas “Medidas para reduzir a prisão preventiva”, quando indica a necessidade de um tratamento diferenciado também para detentas mulheres e aqueles que se encontrem em situação de risco (item n. 17).

Vimos acima que, em tese, é possível prisão especial; vale ressaltar, contudo, que ter um diploma de ensino superior não é, por si só, motivo justificável para se ter direito à prisão especial

No Brasil, a previsão do direito à prisão especial a diplomados em ensino superior não guarda relação com qualquer objetivo constitucional, com a satisfação de interesses públicos ou com a proteção de seu beneficiário frente a algum risco maior a que possa ser submetido em virtude especificamente do seu grau de escolaridade.

Assim, a referida norma não protege categoria de pessoas fragilizadas e merecedoras de tutela. Ao contrário, configura medida estatal discriminatória, que promove a categorização de presos e fortalece as desigualdades, pois beneficia, com base em qualificação de ordem estritamente pessoal (grau de instrução acadêmica), aqueles que já são favorecidos por sua posição socioeconômica, visto que obtiveram a regalia de acesso a uma universidade.

Trata-se, na realidade, de uma medida estatal discriminatória, que promove a categorização de presos e que, com isso, ainda fortalece desigualdades, especialmente em uma nação tão socialmente desigual como a nossa, em que apenas 11,30% da população geral possui ensino superior completo.

Ao permitir-se um tratamento especial por parte do Estado dispensado aos bacharéis presos cautelarmente, a legislação beneficia justamente aqueles que já são mais favorecidos socialmente, os quais já obtiveram um privilégio inequívoco de acesso a uma Universidade.

A separação de presos provisórios por nível de instrução contribui para a perpetuação de uma inaceitável seletividade socioeconômica do sistema de justiça criminal e do Direito Penal, tratando-se de regra incompatível com o princípio da igualdade e com o próprio Estado democrático de Direito.

Nesse contexto, a extensão da prisão especial a essas pessoas caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal, em afronta ao preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei.

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente a ADPF para declarar a não recepção do art. 295, VII, do CPP, pela Constituição Federal.

 

DOD Plus – informações complementares

Pode-se dizer que a prisão especial acabou no Brasil?

NÃO. Nem perto disso. O STF decidiu unicamente que o inciso VII do art. 295 do CPP é incompatível com a Constituição Federal.

Assim, podemos dizer que não é válida a previsão legal de prisão especial pelo simples fato de o indivúdo ser portador de um diploma de ensino superior.

Contudo, continuam válidas as demais hipóteses de prisão especial, sejam aquelas elencadas nos demais incisos do art. 295 do CPP, sejam as previstas em leis esparsas.

 

Existem outras leis que preveem hipóteses de prisão especial?

SIM. Além do art. 295 do CPP, a prisão especial é prevista também em outras normas. Assim, possuem direito à prisão especial:

• os dirigentes de entidades sindicais e o empregado eleito para a função de representação profissional ou para cargo de administração sindical (Lei nº 2.860/1956);

• os pilotos de aeronaves mercantes nacionais (Lei nº 3.988/61);

• os servidores do Departamento Federal de Segurança Pública, que exerçam atividade estritamente policial (Lei nº 3.313/57);

• os funcionários da Polícia Civil da União, dos Estados, Distrito Federal e Territórios Federais (Lei nº 5.350/67);

• os Magistrados (Lei Complementar nº 35/1979);

• os membros do Ministério Público (Lei nº 8.625/1993 e Lei Complementar nº 75/93);

• os Defensores Públicos (Lei Complementar nº 80/94); e

• os Advogados (Lei nº 8.906/94).


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