quarta-feira, 31 de maio de 2023

A contratação de serviços espirituais para provocar a morte de autoridades não configura crime de ameaça

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Larissa, sobrinha do Prefeito, era Secretária de Saúde do Município.

João, o Prefeito, passou a ser investigado por crimes contra a dignidade sexual de crianças, sendo, inclusive, preso e afastado temporariamente do cargo.

Irresignada com a investigação levada a efeito contra seu tio, Larissa resolveu procurar Nair, conhecida na cidade por realizar rituais de magia com intenções maléficas.

Larissa pagou à Nair R$ 5 mil para que ela realizasse serviços espirituais destinados a provocar a morte do Delegado de Polícia, do Promotor de Justiça, do Presidente da Câmara de Vereadores e de um jornalista que teria noticiado os supostos crimes praticados pelo Prefeito.

Acontece que Nair, logo depois de receber a quantia, procurou o jornalista (que seria uma das vítimas dos rituais místicos) e relatou a ele todo ocorrido, argumentando que tinha muita consideração por ele e, em razão disso, não poderia fazer nenhum ritual em seu desfavor, tendo fingido que concordava apenas para reunir provas contra Larissa.

Nair entregou ao jornalista áudios e prints das conversas com a sobrinha do Prefeito.

O jornalista procurou a polícia e representou contra Larissa pelo crime de ameaça.

Diante desses fatos, o juiz deferiu pedido de busca e apreensão na residência de Laís, além da quebra do sigilo dos dados telemáticos do celular dela. Por ocasião de perícia no aparelho celular, a polícia encontrou a fotografia de uma adolescente nua.

O Ministério Público ofereceu denúncia em desfavor de Larissa pelos crimes de ameaça (art. 147, caput, por sete vezes) e por armazenamento de fotografia contendo cena pornográfica de adolescente (art. 241-B c/c art. 241-E, do ECA), em concurso material (art. 69, do CP).

 

Habeas corpus

A defesa de Larissa impetrou habeas corpus, alegando que estaria sofrendo constrangimento ilegal pelos seguintes fatos:

- a investigação foi deflagrada por autoridade policial suspeita, tendo em vista que o próprio Delegado figura como vítima dos fatos em investigação;

- nunca houve qualquer declaração pública da paciente que pudesse ser enquadrada no crime de ameaça.

 

O TJ/GO denegou a ordem.

Inconformada, Larissa impetrou novo habeas corpus, agora no STJ, reiterando todas as suas alegações.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM.

O delito de ameaça somente pode ser cometido dolosamente, ou seja, deve estar configurada a intenção do agente de provocar medo na vítima. Confira a redação do tipo penal:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

 

No caso concreto, não houve nenhuma conduta da paciente direcionada a causar temor nas vítimas.

Não houve nenhuma menção a respeito da intenção em infundir temor, mas tão somente foi narrada a contratação de trabalho espiritual visando a “eliminar diversas pessoas”.

Não ficou demonstrado que a ré teve a vontade livre e consciente de intimidar os ofendidos. A conduta dela consistiu em contratar uma “profissional especializada” que trabalha com esse tipo serviço - que se pode denominar de metafísico -, a fim de que fosse causado mal grave e injusto aos ofendidos.

A paciente esperava que a profissional mantivesse o sigilo, o que, contra sua vontade, não ocorreu. Não há, portanto, o dolo de ameaça, dirigida, direta ou indiretamente, aos ofendidos, como exige a objetividade jurídica do tipo penal.

Além disso, o tipo penal do art. 147 do CP, ao definir o delito de ameaça, descreve que o mal prometido deve ser injusto e grave, ou seja, deve ser sério e verossímil. A ameaça, portanto, deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio, situação também não demonstrada no caso.

Diante das circunstâncias, a instauração do inquérito policial, e as medidas cautelares determinadas, bem como a ação penal, porquanto baseadas em fato atípico (ameaça), são nulas, e consequentemente a imputação pela prática do crime previsto no art. 241-B, c/c o art. 241-E, ambos do ECA.

 

Em suma:

A contratação de serviços espirituais para provocar a morte de autoridades não configura crime de ameaça.

STJ. 6ª Turma. HC 697.581-GO, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 7/3/2023 (Info 771).

 

DOD Plus – não confundir com julgado correlato

A extorsão pode ser praticada mediante a ameaça feita pelo agente de causar um “mal espiritual” na vítima

O crime de extorsão consiste em “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa”.

A ameaça de causar um “mal espiritual” contra a vítima pode ser considerada como "grave ameaça" para fins de configuração do crime de extorsão?

SIM. Configura o delito de extorsão (art. 158 do CP) a conduta do agente que submete vítima à grave ameaça espiritual que se revelou idônea a atemorizá-la e compeli-la a realizar o pagamento de vantagem econômica indevida.

STJ. 6ª Turma. REsp 1299021-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2017 (Info 598).


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