quarta-feira, 17 de maio de 2023

Lei estadual pode proibir que os policiais civis promovam ou participem de manifestações de apreço ou desapreço às autoridades ou contra atos da Administração Pública?

 

A situação concreta foi a seguinte:

A Lei nº 6.425/72, de Pernambuco, trata sobre o regime jurídico dos policiais civis no Estado.

Esse diploma proíbe que os policiais civis promovam ou participem de manifestações de apreço ou desapreço a quaisquer autoridades ou contra atos da Administração Pública em geral. Se o policial descumprir essa vedação, cometerá transgressão disciplinar, na forma do art. 31, IV e V:

CAPÍTULO II

DAS TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES

Art. 31. São transgressões disciplinares:

(...)

IV - Promover ou participar de manifestações de apreço ou desapreço a quaisquer autoridades;

V - Manifestar-se ou participar de manifestações contra atos da Administração Pública em geral.

 

ADPF

O partido político Podemos ingressou com arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) contra esses preceitos sob o argumento de que seriam incompatíveis com o direito constitucional à liberdade de expressão e de manifestação.

O autor argumentou que a hierarquia e a disciplina da corporação não podem ser sobrepostas ao direito à liberdade de expressão, sendo que o respeito à livre manifestação do pensamento é um direito fundamental consagrado.

 

Os argumentos invocados pelo Partido foram acolhidos pelo STF? Essa previsão é incompatível com a CF/88?

NÃO.

 

Liberdade de expressão como direito fundamental

A liberdade de expressão é um direito fundamental, que visa evitar a prática de censura pelo Estado. A despeito disso, esse direito pode ser restringindo como qualquer outro, considerando que não existem “direitos intocáveis”.

A restrição é, em verdade, uma ingerência que se coloca no âmbito de proteção de um direito fundamental. Ingerência essa motivada pela existência, no respectivo ordenamento jurídico, de outros valores e circunstâncias, igualmente protegidos e que devem ser sopesados no contexto concreto.

A jurisprudência do STF é no sentido de que não há direitos constitucionais absolutos. Devem todos eles ser compreendidos dentro do sistema normativo-constitucional vigente, de modo que a eles seja dada máxima efetividade, sem se olvidar da coerência que o sistema impõe.

 

Quando se pode restringir um direito fundamental?

A própria Constituição Federal, seja por normas explícitas, seja por seu arcabouço principiológico, estabelece como e quando pode haver alguma limitação no exercício dos direitos fundamentais.

Desse modo, é possível que se restrinja o alcance de um direito fundamental em três situações:

1) em razão de seu desenho constitucional, quando a própria Constituição Federal prevê limitação para seu exercício;

2) em razão da existência de expressa autorização, na Constituição, para que o legislador ordinário, ao expedir ato legal regulamentando seu exercício, limite-o; ou ainda

3) na ausência de restrições constitucionais diretas e ante a inexistência de autorização de leis restritivas em decorrência de uma ponderação, em subserviência a critérios de proporcionalidade, de valores outros que ostentem igual proteção constitucional.

 

Carreiras da área de segurança pública

O STF entende que a livre manifestação de ideias, quaisquer que sejam – mesmo que envolvam críticas e protestos –, é condição sine qua non para o amadurecimento do sistema democrático e para o desenvolvimento da sociedade pluralista pretendida pelo legislador constituinte.

No entanto, há que se atentar, em especial, para a singularidade das carreiras da área de segurança pública, uma vez que estão sujeitas aos princípios da hierarquia e da disciplina. Tais princípios regem a corporação e existem para que haja a manutenção da segurança interna, da ordem pública e da paz social.

A carreira policial é uma carreira diferenciada, como o próprio art. 144 da CF/88 reconhece ao afirmar que tem a função de exercer “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, com a finalidade de “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, estando, inclusive, destacada do capítulo específico dos servidores públicos.

Nesse contexto, as restrições da lei estadual impugnada são adequadas, necessárias e proporcionais. Isso porque os policiais civis são agentes públicos armados cujas manifestações de apreço ou desapreço relativamente a atos da Administração em geral e/ou a autoridades públicas em particular podem implicar ofensa ao art. 5º, XVI, da CF/88, segundo o qual se reconhece a todos o direito de reunir-se pacificamente e “sem armas”.

Assim, cumpre conciliar esses valores constitucionais: de um lado, a liberdade de expressão dos policiais civis e, de outro, a segurança e a ordem públicas, bem como a hierarquia e a disciplina que regem as organizações policiais.

Corroborando esse entendimento, a própria Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992), ao tratar da “Liberdade de Pensamento e de Expressão”, em seu artigo 13, enfatiza que o exercício desse direito deve assegurar a “proteção da segurança pública, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”:

ARTIGO 13

Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:

a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

 

Esse preceito é complementado pelo disposto nos artigos 15 e 16 da Convenção Americana de Direitos Humanos, os quais dispõem sobre o direito de reunião e a liberdade de associação nos seguintes termos:

ARTIGO 15

Direito de Reunião

É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

ARTIGO 16

Liberdade de Associação

1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos, ou de qualquer outra natureza.

2. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

3. O disposto neste artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia.

 

Em outra oportunidade, o STF considerou que é inconstitucional o exercício do direito de greve direito constitucional que está indissociavelmente ligado à liberdade de expressão por parte de policiais civis e demais servidores que atuem diretamente na área de segurança pública:

O exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública.

É obrigatória a participação do Poder Público em mediação instaurada pelos órgãos classistas das carreiras de segurança pública, nos termos do art. 165 do CPC, para vocalização dos interesses da categoria.

STF. Plenário. ARE 654432/GO, Rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 5/4/2017 (Repercussão Geral – Tema 541) (Info 860).

 

Em suma:

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, considerou recepcionados pela Constituição Federal de 1988 os incisos IV e V do art. 31 da Lei nº 6.425/1972 do Estado de Pernambuco e, por conseguinte, julgou improcedente o pedido formulado na ADPF.

 

 

 


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