segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Se ficar demonstrado que a infecção hospitalar tem liame causal com os danos sofridos por recém-nascido, o hospital deverá indenizar mesmo que o bebê já tenha nascido prematuro e com baixo peso

Imagine a seguinte situação adaptada:

Lucas nasceu prematuro e com baixo peso.

Por esse motivo, precisou ficar internado na UTI neonatal.

Durante o período em que ficou internado, Lucas adquiriu severa infecção hospitalar. Felizmente, ele conseguiu sobreviver, no entanto, lamentavelmente, ficou com sequelas.

Vale ressaltar que, além de Lucas, outras crianças que estavam internadas e que nem eram prematuras, também tiveram infecção hospitalar no mesmo período.

Lucas e sua mãe ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra o hospital.

A instituição de saúde contestou argumentando que a prematuridade e o baixo peso do bebê foram causas que contribuíram para as sequelas sofridas. Logo, aplicando-se a teoria da equivalência dos antecedentes, conclui-se que a prematuridade extrema e o baixo peso foram predominantes para as implicações causadas pela infecção hospitalar, motivo pelo qual a instituição de saúde não teria o dever de indenizar.

 

A questão chegou até o STJ. O Tribunal concordou com os argumentos do hospital?

NÃO.

 

 

Nexo causal

O nexo causal é um dos pressupostos da responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva.

No âmbito do direito civil, o nexo de causalidade é analisado a partir do art. 403 do CC, segundo o qual os prejuízos indenizáveis ou ressarcíveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do seu fato gerador.

Foram desenvolvidas, ao longo do tempo, algumas teorias para melhor elucidar o nexo de causalidade.

 

Teorias clássicas sobre o nexo causal na responsabilidade civil

TEORIAS CLÁSSICAS SOBRE O NEXO CAUSAL NA RESPONSABILIDADE CIVIL

Teoria da

equivalência das condições [1]

Teoria da

causalidade adequada

Teoria do

dano direto e imediato [2]

Equivalência das condições, ou seja, tudo aquilo que antecede o dano será considerado sua causa. 

Nem toda e qualquer condição (ou antecedente) é causa do dano, e sim apenas aquela adequada/apta/idônea.

Somente a condição imediata e direta é necessariamente a causa do dano.

Ex.: se o agente bate o seu carro em outro veículo, não só ele seria responsabilizado como também o fabricante e a concessionária (= infinita espiral de concausas).

Ex.: se o agente bate o seu carro em outro veículo, o fabricante e a concessionária não seriam “causa adequada” para o dano.

Ex.: somente o agente que bate o seu carro em outro veículo é o responsável pelo dano.

 

[1] Também chamada de “teoria da equivalência dos antecedentes” ou “teoria do histórico dos antecedentes (sine qua non)”.

[2] Também chamada de “teoria da interrupção do nexo causal” ou “teoria da causalidade necessária”.

 

Segundo afirmou o Min. Marco Buzzi, em seu voto, o Direito Civil adotou, precipuamente, as teorias da causalidade adequada e do dano direto e imediato, que somente consideram existente o nexo causal quando o dano é efeito necessário e/ou adequado de uma causa (ação ou omissão).

É diferente do Direito Penal, no qual é empregada a teoria da equivalência dos antecedentes - conditio sine qua non -, onde não há distinção entre causa e condição, de forma que tudo aquilo que contribui para a ocorrência do crime gera responsabilidade penal (art. 13 do CP).

 

Jurisprudência do STJ, em muitas vezes, usa a teoria da causalidade adequada e a teoria do dano direto e imediato como se fossem sinônimas

A jurisprudência do STJ não distingue de maneira muito explícita as aludidas teorias, usando-as como sinônimos em diversos julgados, como se vê abaixo:

(...) 2. Na aferição do nexo de causalidade, a doutrina majoritária de Direito Civil adota a teoria da causalidade adequada ou do dano direto e imediato, de maneira que somente se considera existente o nexo causal quando o dano é efeito necessário e adequado da causa cogitada (ação ou omissão). Logo, a configuração do nexo de causalidade, a ensejar a responsabilidade civil do agente, demanda a comprovação de conduta comissiva ou omissiva determinante e diretamente atrelada ao dano. (...)

STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.401.555/MG, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 3/10/2022.

 

O direito brasileiro adota, no campo civil, a chamada “Teoria da Causalidade Adequada” (ou dos “Danos Diretos e Imediatos”), segundo a qual somente se considera existente o nexo causal em relação à conduta que se afigura determinante para a ocorrência do dano.

STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.791.440/BA, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 26/10/2020.

 

Dessa forma, a configuração do nexo de causalidade, no caso concreto, deve ser apreciada nos moldes da teoria da causalidade adequada (ou dos danos diretos e imediatos).

 

O que o hospital pretende é aplicar a teoria da equivalência dos antecedentes para se isentar da responsabilidade

O hospital, sem refutar que houve infecção hospitalar (falha na prestação do serviço nosocomial), defendeu que a prematuridade extrema e o baixo peso foram predominantes para as implicações causadas pela infecção. Com isso, pretende adotar a teoria da equivalência dos antecedentes.

Vale ressaltar, contudo, que essa não é a teoria adotada para responsabilidade civil.

 

Responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor

Trazendo também a análise para a ótica do direito consumerista, é importante recordar que, de acordo com a o art. 14 do CDC, o prestador de serviço responde, independentemente de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos em seu fornecimento.

Com base nesse dispositivo, o STJ possui jurisprudência consolidada no sentido de que é objetiva a responsabilidade do hospital nos casos relacionados à falha na prestação de serviço, sobretudo nos quais os danos sofridos resultam de infecção hospitalar, revelando-se desnecessária a comprovação de erro médico (culpa lato sensu).

Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, a responsabilidade dos hospitais e clínicas (fornecedores de serviços) é objetiva, dispensando a comprovação de culpa, notadamente nos casos em que os danos sofridos resultam de infecção hospitalar.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 608.350/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 7/12/2020.

 

O § 3º do art. 14 do CDC estabelece que as causas excludentes de responsabilidade são:

a) a inexistência de defeito do serviço;

b) o fato exclusivo da vítima ou de terceiros.

 

O ônus de provar qualquer uma dessas causas é do hospital:

A culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro deve ser cabalmente comprovada pelo fornecedor de serviços, a fim de romper o nexo de causalidade e, consequentemente, ilidir a sua responsabilidade objetiva.

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1.604.779/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 20/4/2020.

 

A prematuridade e o baixo peso do recém-nascido não afastam a responsabilidade do hospital em caso de infecção hospitalar

O hospital busca afastar sua responsabilidade objetiva sob a alegação de fato exclusivo do consumidor, fundamentando sua tese na gravidez tardia da genitora, no parto prematuro, no colo do útero curto e nas condições físicas do menor ao nascer, quais sejam, prematuridade extrema e baixo peso.

Essas circunstâncias são, na verdade, riscos intrínsecos à própria atividade desenvolvida pelo hospital, não se mostrando aptos a rechaçar o nexo de causalidade entre a falha no fornecimento do serviço e as sequelas sofridas pelo menor.

Os casos de prematuridade no Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, representam cerca de 12% (entre 10 e 15%) dos recém-nascidos no país, dos 3 milhões de nascidos vivos. Isso significa que cerca de 360 mil crianças nascem prematuras todo ano, quase mil crianças ao dia. (Nota técnica 2019: Prematuridade; Sociedade Brasileira de Pediatria, disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/Nota_Tecnica_2019_Prematuridade.pdf;).

Como se vê, as condições pessoais do bebê apontadas pelo hospital (prematuridade e baixo peso), não se revelam fatores extraordinários ou raros, mas sim rotineiros e frequentes no ambiente nosocomial.

Apesar de a prematuridade e do baixo peso serem fatores que potencializam o risco de infecções hospitalares, houve também, no caso, o contágio de bebês sem essas características, ou seja, recém-nascidos que não eram prematuros, o que afasta a presunção de que tais condições foram determinantes para o contágio da infecção hospitalar.

Portanto, a única causa necessária e preponderante para o desenvolvimento do quadro de saúde da criança evidenciada foi a infecção hospitalar adquirida na UTI neonatal, porquanto ausente a demonstração do nexo de causalidade entre as condições do recém-nascido e os danos por ele suportados.

 

Em suma:

A infecção hospitalar que, reconhecidamente tem liame causal com os danos sofridos por recém-nascido, impõe o afastamento das concausas - a prematuridade e o baixo peso do bebê recém-nascido -, atraindo assim a responsabilidade do hospital pelo pagamento integral das indenizações, à luz da teoria da causalidade adequada (dano direto e imediato).

STJ. 4ª Turma. REsp 2.069.914/DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 6/6/2023 (Info 778).

 

A título de curiosidade, a sentença – mantida ao final pelo STJ – condenou o hospital a pagar:

a) danos materiais no valor de R$ 60.876,44;

b) todos os medicamentos, consultas e materiais de  estimulação, bem como os tratamentos e terapias, que se fizerem necessários para o  prolongamento e melhora da qualidade de vida do menor;

c) pensionamento, em favor da criança, no valor de 4 salários-mínimos, a partir da data em que completar 14 anos, em razão de o ato ilícito ter lhe causado a diminuição da capacidade para o trabalho;

d) danos morais do menor em R$ 100 mil e da genitora em R$ 50 mil;

e R$ 100 mil para a criança, a título de indenização pelos danos estéticos.


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