sábado, 12 de agosto de 2023

Se o réu for condenado por ameaça, praticada no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, é possível aplicar contra ele somente a pena de multa que é prevista de forma autônoma no preceito secundário desse delito?

Penas restritivas de direitos

O Código Penal prevê que, em determinadas situações, em se tratando de pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade, pode ser esta reprimenda substituída por uma ou duas penas restritivas de direito.

 

Quais são os requisitos cumulativos para a conversão da pena privativa de liberdade em penas restritivas de direitos?

Estão previstos no art. 44 do CP e podem ser assim resumidos:

1º requisito (objetivo):

Natureza do crime e

quantum da pena

2º requisito (subjetivo):

Não ser reincidente

em crime doloso

3º requisito (subjetivo):

A substituição seja

indicada e suficiente

a) Se for crime doloso:

• a pena aplicada deve ser igual ou inferior a 4 anos;

• o crime deve ter sido cometido sem violência ou grave ameaça a pessoa.

b) Se for crime culposo: pode haver a substituição qualquer que seja a pena aplicada.

Regra: para ter direito, o réu não pode ser reincidente em crime doloso.

Exceção: se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.

A culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias, indicarem que essa substituição seja suficiente (Princípio da suficiência da resposta alternativa ao delito).

 

Veja a redação do art. 44:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:

I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

II – o réu não for reincidente em crime doloso;

III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.

 

Se o réu pratica um crime com violência ou grave ameaça, mas se trata de uma infração penal de menor potencial ofensivo (pena máxima de 2 anos), ele terá direito à substituição da pena?

A doutrina majoritária afirma que sim. Se o agente for condenado por uma infração penal de menor potencial ofensivo, sua pena privativa de liberdade poderá ser substituída por restritiva de direitos mesmo que tenha sido cometida com violência ou grave ameaça. Trata-se de exceção ao inciso I do art. 44 do CP.

O argumento utilizado pela doutrina é o de que a Lei nº 9.099/95 (que é posterior ao Código Penal) previu uma série de medidas despenalizadoras para as infrações penais de menor potencial ofensivo (exs: transação penal e composição civil). Logo, seria irrazoável e contrário ao espírito da lei não permitir a aplicação de penas restritivas de direito para tais infrações consideradas de menor gravidade.

 

Quantas penas restritivas de direito o réu terá que cumprir:

Se a pessoa for condenada a...

Pena igual ou inferior a 1 ano de prisão:

Pena superior a 1 ano (até 4 anos) de prisão:

A pena privativa de liberdade aplicada poderá ser substituída por:

a) multa OU

b) 1 pena restritiva de direito

A pena privativa de liberdade aplicada poderá ser substituída por:

a) 1 pena restritiva de direito + multa OU

b) 2 penas restritivas de direito.

 

Discussão sobre a aplicação das penas restritivas para infrações praticadas no âmbito da violência doméstica

O art. 17 da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) prevê o seguinte:

Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

 

Veja, portanto, que esse dispositivo proíbe que o juiz aplique as seguintes penas restritivas de direitos à pessoa que praticou violência doméstica e familiar contra a mulher:

• Pena de “cesta básica”;

• Quaisquer espécies de prestação pecuniária (art. 45, §§ 1º e 2º);

• Pagamento isolado de multa (art. 44, § 2º do CP).

 

Diante disso, alguns doutrinadores sustentaram a tese de que o art. 17, ao proibir apenas esses tipos de penas, teria, a contrario sensu, permitido que fossem aplicadas outras espécies de penas restritivas de direitos.

 

Essa interpretação foi aceita pela jurisprudência do STJ? É possível a aplicação de penas restritivas de direito para os crimes cometidos contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico?

NÃO. O STJ pacificou o entendimento de que não cabe a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos crimes ou contravenções penais cometidos contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico.

O STJ editou a súmula 588 para espelhar essa sua posição consolidada:

Súmula 588-STJ: A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

 

E o art. 17 da Lei nº 11.340/2006?

A interpretação que prevaleceu foi a seguinte: além das sanções previstas no art. 17, são proibidas quaisquer penas restritivas para os condenados por violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque o art. 44, I, do CP veda penas restritivas de direito em caso de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. Nesse sentido:

(...) Embora a Lei nº 11.340/2006 não vede a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, obstando apenas a imposição de prestação pecuniária e o pagamento isolado de multa, o art.  44, I, do CP proíbe a conversão da pena corporal em restritiva de direitos  quando  o  crime  for cometido com violência à pessoa (...)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1521993/RO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 04/08/2016.

 

Vale ressaltar que a Lei nº 9.099/95 não se aplica para os delitos praticados com violência doméstica contra a mulher, por força do art. 41 da Lei nº 11.340/2006:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

 

Feita essa revisão, imagine a seguinte situação hipotética:

João e Francisca eram casados.

Determinado dia, tiveram uma grave discussão e ele disse que iria matar a mulher.

No mesmo instante, Francisca decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da ameaça, procurou a Delegacia da Mulher.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

 

Qual é a natureza da ação penal no caso do crime de ameaça?

Trata-se de crime de ação penal pública condicionada. Assim, a denúncia somente pode ser oferecida se houver representação da vítima (art. 147, parágrafo único, do CP).

 

A pena do crime de ameaça é de 1 a 6 meses de detenção. Trata-se, portanto, de infração de menor potencial ofensivo. Por que não foram aplicadas, no exemplo acima, as medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional do processo e transação penal)?

Conforme já dito, a Lei Maria da Penha proíbe expressamente que se aplique a Lei nº 9.099/95 para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Veja novamente:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.

 

Por essa razão, a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. Nesse sentido:

Súmula 536-STJ: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

 

Voltando ao caso concreto:

O juiz entendeu que havia prova da autoria e da materialidade e, portanto, condenou João pela prática do crime de ameaça.

O magistrado aplicou contra o réu apenas a pena de multa de 10 dias-multa.

O juiz argumentou que a regra restritiva contida no art. 17 da Lei Maria da Penha deve sofrer interpretação limitada, porque inibe direitos. Assim, para ele, a interpretação correta é a seguinte:

- o art. 17 fala que é proibida “a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”;

- esse dispositivo está se referindo apenas à multa;

- logo, o art. 17 não impede a aplicação da multa prevista como pena autônoma no próprio preceito secundário do tipo penal imputado, como no caso do crime de ameaça, que tem a seguinte redação:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

 

Em outras palavras, o magistrado argumentou que:

- o art. 17 da LMP proíbe a aplicação da multa como pena restritiva de direitos;

- mas não impede a aplicação da pena de multa isoladamente, se ele for prevista no preceito secundário, como no caso da ameaça.

 

O STJ concordou com esses argumentos?

NÃO.

A intenção do legislador ao impedir a aplicação exclusiva da pena de multa foi a de ampliar a função de prevenção geral das penas impostas nos casos de crimes cometidos nesse contexto.

Dessa forma, pretende-se demonstrar à sociedade que a prática de agressão contra a mulher acarreta consequências graves para o autor, que vão além do aspecto financeiro.

Diante disso, a intepretação mais adequada à finalidade da norma é no sentido de que a proibição legal também se aplica à hipótese de multa estabelecida como uma pena autônoma na parte secundária do tipo penal, como é o caso do crime de ameaça (art. 147 do Código Penal).

Assim, a imposição da pena de multa, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, só pode ocorrer de forma cumulativa (ex: reclusão/detenção + multa), nunca de maneira isolada (apenas multa).

 

Em suma:


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