quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Compete ao Tribunal do Júri Federal julgar causa na qual há demonstração de interesse federal específico em relação ao crime doloso contra a vida, ou quando há conexão deste com crime federal

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é contrabandista. Ele compra mercadorias no Paraguai e as revende no Brasil.

Determinado dia, João voltava do Paraguai com seu carro repleto de cigarros importados sem registro na ANVISA.

Quando já estava no Brasil, ele avistou uma blitz da Polícia Militar e fugiu.

Um dos policiais determinou que o agente parasse, mas João não atendeu e atirou contra o PM, que acabou falecendo.

 

Quais foram os crimes cometidos por João?

Contrabando (art. 334-A do CP), resistência (art. 329) e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, V).

 

Vamos falar agora sobre a competência.

O crime de contrabando é de competência da Justiça Federal. A dúvida é o delito de homicídio.

 

A Justiça Federal também julgará o homicídio praticado contra a vida do Policial Militar?

SIM. Isso porque existe uma conexão instrumental entre o contrabando e o homicídio.

Se o intento da prática do homicídio era o de impedir o exercício do jus puniendi em relação ao crime de contrabando, ou seja, visava embaraçar a persecutio in criminis que seria realizada na Justiça Federal, há o interesse federal na persecução, também, dos crimes dolosos contra a vida, pois cometidos para obstar ou dificultar o exercício de atribuições conferidas a órgãos federais.

Além disso, a simples conexão ou continência com crime federal atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento de todos os delitos, nos termos da Súmula 122/STJ, na qual não faz nenhuma exceção quando se trata de delito doloso contra a vida:

Súmula 122-STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, "a", do Código de Processo Penal.

 

Antigamente, defendia-se que deveria haver o desmembramento dos processos e que o homicídio deveria ser julgado pelo Tribunal do Júri estadual. O argumento era o de que a competência do Tribunal do Júri possui assento constitucional e, portanto, deveria prevalecer.

Esse raciocínio, contudo, parte de uma premissa equivocada, que é a de que a previsão constitucional da competência do Tribunal do Júri se refere apenas ao Júri estadual e, portanto, se sobreporia à competência da Justiça Federal.

O art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição Federal, assegura a competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sem fazer distinção alguma entre o Tribunal do Júri Estadual e o Tribunal do Júri Federal. Este último é expressamente previsto no art. 4º do Decreto-Lei nº 253/67, recepcionado pela Constituição Federal:

Art. 4º Nos crimes de competência da Justiça Federal, que devem ser julgados pelo Tribunal do Júri, observar-se-á o disposto na legislação processual, cabendo a sua presidência ao juiz a que competir o processamento da respectiva ação penal.

 

Em outras palavras, a competência do Tribunal do Júri tem previsão constitucional. No entanto, não existe apenas o Tribunal do Júri na Justiça Estadual, havendo também na Justiça Federal. Logo, nada impede que o crime doloso contra vida seja julgado pela Justiça Federal, sendo, no caso, de competência do Tribunal do Júri Federal.

Não é possível se determinar o julgamento do contrabando, crime federal, pelo Tribunal do Júri Estadual. A competência da Justiça Federal é absoluta e tem previsão constitucional, assim como a competência do Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida.

 

Em suma:

 

Mudança de entendimento

Vale ressaltar que o julgamento acima representa um overruling, ou seja, a superação da orientação que prevalecida no STJ. Antes do acórdão acima explicado, prevalecia no STJ o seguinte:

(...) 1. No caso, não resta configurada a competência do Tribunal do Júri federal, uma vez que as vítimas da tentativa de homicídio são policiais militares estaduais no exercício de suas funções, sendo certo, outrossim, que a motivação do delito (evitar a prisão em flagrante pela prática de crime da competência federal - contrabando) é irrelevante para a definição da competência.

2. Os demais delitos (contrabando, de competência da Justiça Federal, resistência e dano, de competência da Justiça Estadual), ao que se tem, foram praticados no mesmo contexto fático, quando os denunciados foram abordados transportando cigarro, resistiram à ordem policial, efetuaram disparos de arma de fogo contra os policiais estaduais e danificaram as viaturas. Assim, evidente a conexão nos termos do disposto no art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal. (...)

STJ. 3ª Seção. CC 153.306/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, relatora para acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 22/11/2017.


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