segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A decisão que homologa o arquivamento do inquérito que apura violência doméstica deve observar a devida diligência na investigação e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ

Imagine a seguinte situação adaptada:

No dia 27/02/2022, a Polícia recebeu uma ligação na qual Patrícia afirmava que tinha acabado de ser agredida por seu namorado Eduardo, na residência onde moravam.

Uma guarnição policial foi até o local. Eduardo não mais se encontrava e Patrícia foi levada até a Delegacia.

Ao ser ouvida perante a autoridade policial, Patrícia narrou que ela e o namorado discutiram por ciúmes e, em um dado momento, ele a agrediu com tapas no rosto e disse que ela era vagabunda e burra. Ela negou ter agredido o namorado.

Eduardo foi localizado dias depois e aceitou ir até a Delegacia onde afirmou que, durante a discussão, Patrícia mordeu seu dedo e, como não soltava, ele foi obrigado a desferir tapas em seu rosto para ela largar.

A vítima foi submetida a exame pericial, que confirmou a existência de múltiplas lesões por instrumento contundente em seu corpo.

 

Instauração e arquivamento do inquérito policial

Em 20/07/2022, foi instaurado inquérito para apurar suposta prática de lesões corporais em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Em 28/07/2022, sem que fossem realizadas outras diligências, o Ministério Público requereu o arquivamento do Inquérito.

Em 02/08/2022, o Juízo de origem homologou o pedido de arquivamento, limitando-se a afirmar que acolhia promoção do Ministério Público.

A vítima formulou pedido de reconsideração apresentando, inclusive, esclarecimentos adicionais, novos documentos e rol de testemunhas, porém a Promotora de Justiça manifestou-se contra e o pedido da vítima foi indeferido pelo Juízo singular.

Diante da negativa, a vítima formulou pedido de remessa dos autos para revisão do arquivamento pelo Procurador-Geral de Justiça, o que foi igualmente indeferido pelo Juízo de origem.

 

Mandado de segurança

Irresignada, a vítima impetrou mandado de segurança no Tribunal de Justiça.

O TJ denegou a ordem por entender que, após a decisão de arquivamento de inquérito, não havia possibilidade de reanálise a pedido da vítima.

Patrícia interpôs recurso em mandado de segurança, nos termos do art. 105, II, “b”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

II - julgar, em recurso ordinário:

(...)

b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;

 

A vítima argumentou que possui direito líquido e certo ao prosseguimento das investigações, pois há indícios suficientes de autoria e materialidade, inclusive diante das provas que foram apresentadas.

Alegou subsidiariamente, que teria o direito de pleitear a revisão do arquivamento ao Procurador-Geral de Justiça, conforme determina o art. 28, do CPP.

 

O STJ concordou com a vítima impetrante?

SIM. O STJ deu parcial provimento ao recurso ordinário para conceder em parte a segurança, a fim de cassar a decisão que homologou o arquivamento do inquérito e determinar a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça do Estado, nos termos do art. 28, do CPP.

Vamos entender com calma.

 

Cabe recurso contra a decisão do juiz que, a pedido do MP, arquiva o inquérito policial?

NÃO. Por ausência de previsão legal, a jurisprudência majoritária do STJ compreende que a decisão do Juiz singular que, a pedido do Ministério Público, determina o arquivamento de inquérito policial, é irrecorrível.

Todavia, em hipóteses excepcionalíssimas, nas quais há flagrante violação a direito líquido e certo da vítima, o STJ tem admitido o manejo do mandado de segurança para impugnar a decisão de arquivamento.

 

Direito da vítima de participação na persecução criminal

A admissão do mandado de segurança, nesses casos, encontra fundamento no dever de assegurar às vítimas de possíveis violações de direitos humanos o direito de participação em todas as fases da persecução criminal, inclusive na etapa investigativa, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenação proferida contra o Estado brasileiro.

 

A ação penal nos crimes conta a violência doméstica é instrumento concretizador de direitos humanos

O exercício da ação penal em contextos de violência contra a mulher constitui verdadeiro instrumento para garantir a observância dos direitos humanos, devendo ser compreendido, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como parte integrante da obrigação do Estado brasileiro de garantir o livre e pleno exercício desses direitos a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição e de assegurar a existência de mecanismos judiciais eficazes para proteção contra atos que os violem, conforme se extrai dos arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992) e do art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/1996):

ARTIGO 1

Obrigação de Respeitar os Direitos

1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

(...)

ARTIGO 25

Proteção Judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados-Partes comprometem-se:

a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

 

Deveres dos Estados

Artigo 7º

Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:

(...)

b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; (...)

 

Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao proferir condenação contra o Brasil no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, reforçou que os países signatários da Convenção Americana têm o dever de, diante da notícia de violações de direitos humanos, agir com a devida diligência para promover uma investigação séria, imparcial e efetiva do ocorrido, no âmbito das garantias do devido processo. Em especial, quanto ao arquivamento de inquéritos sem que houvesse prévia investigação empreendida com a devida diligência, a Corte Interamericana censurou a conduta do Poder Judiciário brasileiro que, naquele caso, “não procedeu a um controle efetivo da investigação e se limitou a manifestar estar de acordo com a Promotoria, o que foi decisivo para a impunidade dos fatos e a falta de proteção judicial dos familiares”.

 

Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil

Ademais, no caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana novamente fez um alerta ao Poder Judiciário Brasileiro, destacando que “a ineficácia judicial frente a casos individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade que facilita e promove a repetição de fatos de violência em geral” e “envia uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o sentimento e a sensação de insegurança das mulheres, bem como sua persistente desconfiança no sistema de administração de justiça”.

 

Voltando ao caso concreto

No caso concreto, a palavra segura da vítima, aliada à existência de laudo pericial constatando múltiplas lesões significativas e atestando que houve ofensa à sua integridade corporal, formam um substrato probatório que não pode ser desprezado.

Ainda que não se formasse a convicção pelo exercício imediato da ação penal, seria necessário, no mínimo, a busca por testemunhas ou outras informações, a fim de melhor definir se existe, ou não, situação de violência contra a mulher.

A decisão que homologou o arquivamento do inquérito foi proferida sem que fosse empregada a devida diligência na investigação e com inobservância de aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima, corroborada por outros indícios probatórios, que assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher:

A esse respeito, extrai-se do referido Protocolo:

“As declarações da vítima qualificam-se como meio de prova, de inquestionável importância quando se discute violência de gênero, realçada a hipossuficiência processual da ofendida, que se vê silenciada pela impossibilidade de demonstrar que não consentiu com a violência, realçando a pouca credibilidade dada à palavra da mulher vítima, especialmente nos delitos contra a dignidade

sexual, sobre ela recaindo o difícil ônus de provar a violência sofrida.

Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal)." (In.: Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça/CNJ, 2021, p. 85).

 

A palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica deve ser examinada com seriedade e diligência

O STJ afirmou que a decisão no recurso em mandado de segurança não significa que se esteja fazendo um juízo valorativo acerca da veracidade, ou não, da narrativa fática apresentada pela vítima, cuja apuração encontra-se em fase inicial e competirá às instâncias ordinárias no curso do devido processo legal.

O que o STJ sustentou é que a palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica contra a mulher deve ser examinada com a seriedade e a diligência compatíveis com os estândares nacionais e internacionais próprios da investigação desse tipo de delito, o que não foi observado.

Dessa forma, o encerramento prematuro das investigações, aliado às manifestações processuais inconsistentes nas instâncias ordinárias, denotam que não houve a devida diligência na apuração de possíveis violações de direitos humanos praticadas contra a vítima, em ofensa ao seu direito líquido e certo à proteção judicial, o que lhe é assegurado pelos arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, c.c. o art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

 

Em suma:


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