domingo, 29 de outubro de 2023

Juiz determinou, como medida protetiva de urgência, que o infrator não se aproximasse da mulher vítima de violência doméstica. A mulher, no entanto, permitiu que o réu se aproximasse. Há o crime do art. 24-A da Lei 11.340/2006 (descumprir medida protetiva de urgência)?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina foi agredida por seu filho Carlos.

Ela procurou a Delegacia de Polícia.

O juízo plantonista, a partir de representação da autoridade policial, com base nos incisos II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), decretou:

• o afastamento de Carlos da residência da vítima;

• a proibição de que ele se aproxime de Regina a uma distância inferior a 500m; e

• a proibição de que mantenha com ela qualquer tipo de contato.

 

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

(...)

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

 

Passados alguns meses, Regina ficou com pena do filho. Assim, a despeito das medidas proibitivas impostas, ela mesmo entrou em contato com o filho. Ao descobrir que ele estava desabrigado, Regina saiu de sua própria residência para o acusado ir morar lá, tendo ela se mudado para a casa da filha, que fica no mesmo lote.

Alguns dias depois, Carlos foi até a casa de sua irmã, local onde sua mãe estava, para comer um prato de comida. Ao terminar o prato oferecido, Carlos exigiu mais comida, porém não havia, fazendo com que ele ficasse transtornado. A irmã o expulsou do local e fechou a casa, mas o denunciado passou a empurrar a porta para entrar. A mãe do agressor pegou cabo de vassoura para amedrontá-lo, na tentativa de fazê-lo sair do local. A neta da vítima chamou a polícia e Carlos foi novamente preso.

Em juízo, a vítima relatou que consentiu com a aproximação do réu, tanto que cedeu a casa para ele morar.

Carlos, que já respondia pelo delito de lesão corporal, foi denunciado pelo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (art. 24-A da Lei nº 11.340/2006):

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:        

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.         

§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.

 

A defesa pugnou pela sua absolvição, nos termos do art. 386, III, do CPP, alegando que houve consentimento da ofendida para a aproximação do filho.

O juízo condenou o réu sustentando que o consentimento da vítima na aproximação do agressor não afasta a tipicidade do fato. Para o magistrado, no “crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, o bem jurídico tutelado é a administração da justiça e, apenas indiretamente, a proteção da vítima. Trata-se, portanto, de bem indisponível. O consentimento da vítima na aproximação do agressor não tem o condão de afastar a tipicidade do fato”.

A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformada, a defesa interpôs recurso especial.

 

Para o STJ, no caso concreto acima narrado, houve o crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/2006?

NÃO.

O entendimento adotado pelas instâncias de origem não encontra amparo na jurisprudência do STJ.

Para o STJ, o consentimento da vítima que aceita a aproximação do réu afasta eventual ameaça ou lesão ao bem jurídico tutelado pelo crime capitulado no art. 24-A da Lei nº 11.340/2006.

No caso concreto, é incontroverso que a própria vítima permitiu a aproximação do réu, autorizando-o a residir com ela no mesmo lote residencial, em casas distintas. Com isso, fica evidente a atipicidade da conduta.

Conforme já decidiu o STJ:

Ainda que efetivamente tenha o acusado violado cautelar de não aproximação da vítima, isto se deu com a autorização dela, de modo que não se verifica efetiva lesão e falta inclusive ao fato dolo de desobediência.

STJ. 6ª Turma. HC 521.622/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 22/11/2019.

 

Em suma:

A aproximação do réu com o consentimento da vítima torna atípica a conduta de descumprir medida protetiva de urgência. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.330.912-DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 22/8/2023 (Info 785).


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