Dizer o Direito

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A remessa necessária tem devolutividade ampla, permitindo a análise de questões não suscitadas na apelação

Noções gerais sobre o reexame necessário

O chamado “reexame necessário” ou “duplo grau de jurisdição obrigatório” é um instituto previsto no art. 496 do CPC/2015 e em algumas leis esparsas:

Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.

§ 2º Em qualquer dos casos referidos no § 1º, o tribunal julgará a remessa necessária.

 

Deixa eu explicar melhor:

- Se a sentença proferida pelo juiz de 1ª instância:

a) for contra a Fazenda Pública; ou

b) julgar procedentes os embargos do devedor na execução fiscal (o que também é uma sentença contra a Fazenda Pública);

 

- Essa sentença deverá ser, obrigatoriamente, reexaminada pelo Tribunal de 2º grau (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal);

- Mesmo que a Fazenda Pública não recorra;

- E, enquanto não for realizado o reexame necessário, não haverá trânsito em julgado.

 

Obs: o reexame necessário não possui natureza jurídica de recurso. Desse modo, é tecnicamente incorreto denominar este instituto de “recurso ex officio”, “recurso de ofício” ou “recurso obrigatório”.

 

Exceções ao reexame necessário

O CPC prevê, em dois parágrafos, situações em que, mesmo a sentença se enquadrando nos incisos do art. 496, não haverá a obrigatoriedade do reexame necessário:

Art. 496 (...)

§ 3º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:

I - 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;

III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.

 

§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

I - súmula de tribunal superior;

II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

 

Feita essa revisão, imagine agora a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de indenização contra o Estado-membro.

O juiz julgou os pedidos parcialmente procedentes condenando o réu a pagar:

• R$ 800 mil de danos materiais;

• R$ 100 mil de danos morais.

 

Caberia remessa necessária neste caso?

SIM. Isso porque, considerando o valor do salário-mínimo da época, essa condenação era superior a 500 salários-mínimos.

 

Apelação interposta pelo Estado

A Fazenda Pública interpôs apelação questionando unicamente o valor dos danos morais fixados.

O Estado não impugnou os demais pontos da condenação, como o valor dos danos materiais.

Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça, além de analisar o ponto expressamente impugnado pelo Estado (danos morais), também revisou, em sede de remessa necessária (reexame necessário), o valor dos danos materiais, reduzindo-os para R$ 600 mil sob o argumento de que R$ 200 mil não foram comprovados.

 

Recurso especial

João, inconformado com esta revisão de pontos não impugnados especificamente na apelação do Estado, recorreu ao STJ, alegando que teria ocorrido preclusão consumativa quanto às matérias não impugnadas no recurso voluntário e que, por isso, não poderiam ter sido revisadas pelo Tribunal.

Ele argumentou que, conforme o art. 496, § 1º do CPC/2015, não caberia reexame necessário quando já houvesse recurso voluntário do ente público:

Art. 496 (...)

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.

 

O STJ concordou com os argumentos de João? O Tribunal de Justiça errou ao examinar também a condenação pelos danos materiais mesmo não tendo havido recurso voluntário sobre isso?

NÃO.

Considerando a finalidade da remessa necessária, é plenamente possível sua análise mesmo quando houver a interposição de recurso voluntário.

Ainda que tenha sido editada antes do Código de Processo Civil de 2015, essa compreensão já era orientada pelo conteúdo da Súmula 325 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe: “a remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.

Portanto, mesmo na ausência de impugnação específica sobre determinada matéria no recurso voluntário, toda a decisão deve ser revista no âmbito do reexame necessário. Isso porque se trata de um instituto voltado à proteção do interesse público.

O § 1º do art. 496, § 1º, do CPC apenas regulamenta a forma de atuação da remessa necessária nos casos em que não há interposição de recurso voluntário, não podendo ser interpretado de forma restritiva. As hipóteses de incidência da remessa necessária estão previstas, de maneira exaustiva, nos §§ 3º e 4º do referido artigo.

Tal entendimento está em consonância com a jurisprudência do STJ, que reconhece a ampla devolutividade da remessa necessária.

Dessa forma, as condenações impostas à Fazenda Pública podem ser objeto de análise pelo Tribunal, independentemente da interposição de apelação, não havendo que se falar em preclusão de matérias que não tenham sido expressamente suscitadas no recurso.

Nesse sentido:

A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, (Súmula 325 do STJ), não se limitando ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum.

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.068.436/AL, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 11/3/2024.

 

Não há que falar em preclusão quando o Tribunal de origem, em sede de reexame necessário, aprecia o mérito da demanda, mesmo sem ter havido pronunciamento do Juiz de primeiro grau ou sequer menção da matéria pelo recorrente no recurso de apelação.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 285.333/GO, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 25/6/2019.

 

Em suma:

As condenações da Fazenda Pública poderão ser objeto de análise pelo Tribunal de origem ainda que não sejam suscitadas no recurso de apelação, pois a remessa necessária possui ampla devolutividade, o que impede a preclusão da matéria. 

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1.935.370-TO, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 24/2/2025 (Info 846).


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