terça-feira, 27 de maio de 2025
A conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública (art. 17, § 16 da LIA) deve ocorrer antes da sentença, no juízo de primeiro grau
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 2016, o Ministério Público
Federal ingressou com ação civil pública contra João, servidor público, alegando
que ele teria violado princípios da Administração Pública ao supostamente
favorecer uma empresa em um processo licitatório.
Vale ressaltar que o MP não alegou que houve dano ao erário nem
enriquecimento ilícito, apenas violação de princípios administrativos. A
imputação foi de que João teria praticado o ato de improbidade administrativa
previsto no art. 11, caput e inciso I da Lei nº 8.429/92, em sua redação
original:
Lei de Improbidade
Administrativa |
|
Antes da Lei
14.230/2021 |
Depois da Lei
14.230/2021 |
Art. 11. Constitui ato de
improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração
pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: |
Art. 11. Constitui ato de
improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração
pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de
imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: |
I - praticar ato visando fim
proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de
competência; |
I - (revogado); |
Em março de 2020 (antes,
portanto, da Lei nº 14.230/2021), o juiz julgou improcedentes os pedidos
formulados pelo MP.
O Ministério Público interpôs
apelação para o Tribunal Regional Federal.
Em março de 2022 (depois,
portanto, da Lei nº 14.230/2021), o TRF julgou a apelação e manteve a sentença de
improcedência. O Tribunal aplicou as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021
e afirmou que as condutas atribuídas a João não mais configuravam atos de
improbidade à luz do novo regime normativo.
Embargos de declaração
Inconformado, o MPF opôs embargos
de declaração pedindo:
1) que o TRF determine a
suspensão (sobrestamento) do processo considerando que o STF está analisando a
constitucionalidade das mudanças operadas pela Lei nº 14.230/2021 (ADIs 7.236 e
7.237) e que a decisão do STF poderia mudar o resultado do caso de João.
2) alternativamente, o MP afirmou o seguinte: já que não há
mais improbidade, a presente ação deve ser convertida em uma ação civil pública
comum com base no art. 17, § 16 da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº
14.230/2021, para que João seja responsabilizado pela irregularidade
administrativa de outra forma (mesmo que não seja mais improbidade):
Art. 17 (...)
§ 16. A qualquer momento, se o
magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades
administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos
para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda,
poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em
ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.
(Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
O MP argumentou que essa
conversão poderia ocorrer agora porque o § 16 fala em “a qualquer momento”.
Rejeição dos embargos e
interposição de recurso especial
O TRF rejeitou os embargos de
declaração.
Ainda inconformado, o MPF
interpôs recurso especial ao STJ insistindo nos dois pedidos acima
(sobrestamento ou, subsidiariamente, conversão em ação civil pública).
O STJ deu provimento ao
recurso do MPF?
NÃO.
Não é caso de sobrestamento do processo
O art. 313, inciso V, alínea “a”, do Código de Processo
Civil prevê a possibilidade de suspensão do processo quando houver dependência
do julgamento de outra causa. Entretanto, esta dependência deve ser efetiva e
concreta, o que não se verifica no presente caso:
Art. 313. Suspende-se o processo:
(...)
V - quando a sentença de mérito:
a) depender do julgamento de
outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação
jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;
(...)
A mera existência de ações diretas de
inconstitucionalidade (ADIs 7.236 e 7.237) questionando dispositivos da Lei nº 14.230/2021
não torna, por si só, obrigatória a suspensão da ação de improbidade
administrativa. Isso porque as leis são dotadas de presunção de
constitucionalidade, característica que somente é afastada mediante decisão do STF.
Destaque-se que, se fosse o caso de suspender os
processos que aplicam a norma questionada, caberia ao próprio STF, no exercício
de sua competência constitucional, determinar o sobrestamento das demandas
correlatas ou suspender cautelarmente a eficácia da norma impugnada. Contudo,
até o presente momento, não houve qualquer decisão nesse sentido por parte da
Corte.
A suspensão automática de todos os processos que envolvem
normas questionadas em ADI, sem determinação específica do STF, acarretaria
insegurança jurídica e paralisação da prestação jurisdicional.
Portanto, na ausência de decisão do STF suspendendo a
eficácia da norma questionada ou determinando expressamente o sobrestamento dos
feitos correlatos, deve prevalecer a presunção de constitucionalidade da Lei nº
14.230/2021, sendo desnecessário o sobrestamento do presente processo.
A conversão de ação de improbidade em ação civil
pública só pode ocorrer no primeiro grau de jurisdição
O § 16 do art. 17 da Lei de Improbidade estabelece que “qualquer
momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de
irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos
os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo
passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de
improbidade administrativa em ação civil pública”.
Embora o texto normativo utilize a expressão “a qualquer
momento”, a interpretação teleológica e sistemática do dispositivo indica que
tal conversão deve ocorrer no primeiro grau de jurisdição e antes da prolação
da sentença. Por quê?
1) o dispositivo refere-se expressamente ao termo
“magistrado”, sinalizando que a competência para tal decisão pertence ao juízo
de primeiro grau. Esta interpretação é corroborada pelo §17 do mesmo artigo,
que prevê o agravo de instrumento como recurso cabível contra a decisão que
converter a ação:
Art. 17 (...)
§ 17. Da decisão que converter a ação
de improbidade em ação civil pública caberá agravo de instrumento. (Incluído
pela Lei nº 14.230, de 2021)
O agravo de instrumento é recurso típico da fase de
conhecimento do primeiro grau, não se aplicando às decisões proferidas em sede
recursal.
2) A conversão da ação de improbidade em ação civil
pública implica substancial modificação da causa de pedir e dos pedidos
formulados, exigindo, em regra, aditamento da petição inicial e, possivelmente,
nova instrução probatória. Tais providências são incompatíveis com a fase
recursal ou com instâncias superiores, em razão dos princípios do
contraditório, da ampla defesa, da estabilidade da lide e da segurança
jurídica.
Em suma:
A conversão de ação de improbidade administrativa em
ação civil pública, prevista no art. 17, § 16, da Lei n. 8.429/1992 (com a
redação atual), deve ocorrer no primeiro grau de jurisdição, antes da sentença,
conforme interpretação teleológica e sistemática do dispositivo, com
competência atribuída ao magistrado de primeira instância e decisão de
conversão sujeita ao recurso de agravo de instrumento, conforme previsto no §
17 do mesmo artigo.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.139.458-SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 18/2/2025 (Info
845).
