sábado, 3 de maio de 2025
É cabível ANPP em ação penal privada, inclusive após o recebimento da queixa-crime, sendo o Ministério Público legitimado a propô-lo de forma supletiva quando houver inércia ou recusa infundada do querelante
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ofereceu queixa-crime contra Pedro, imputando-lhe a prática
dos crimes de difamação e injúria.
A queixa-crime foi recebida.
O juiz solicitou manifestação do Ministério Público sobre
eventuais benefícios legais aplicáveis ao caso.
O MP, então, propôs um Acordo de Não Persecução Penal
(ANPP) em favor de Pedro, sem consultar João (o querelante).
O Ministério Público ofereceu acordo de não persecução
penal.
O MP argumentou que, no exercício da função de custos
legis, poderia formular proposta de ANPP em crimes de ação penal privada, uma
vez que não existe disposição legal que vede a aplicação do art. 28-A do CPP
nessas hipóteses.
Ressaltou que o ANPP é um benefício concedido em
infrações de ação penal pública, mas que negar sua extensão a crimes de
iniciativa privada violaria os princípios da proporcionalidade e da
razoabilidade.
João, o querelante, se opôs e requereu a desconsideração
do ANPP oferecido, sob o argumento de que o MP era parte ilegítima para
oferecer o benefício em ação penal de iniciativa privativa do ofendido.
Para o STJ, agiu corretamente o Ministério Público?
É cabível que o MP ofereça o ANPP em ação penal privada, mesmo após o
recebimento da denúncia?
SIM.
O ANPP foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro
pelo art. 28-A do CPP, por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), com o
inegável propósito de possibilitar soluções consensuais para crimes de menor
gravidade, reduzindo o número de processos penais ao mesmo tempo em que
propicia maior celeridade à justiça criminal.
O ANPP veio como forma de mitigação ao princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública diante da existência de lastro suficiente
de autoria e materialidade para oferecimento da denúncia, assim como já
acontece na transação penal, instituto cabível para as infrações de menor
potencial ofensivo (art. 76 da Lei n. 9.099/1995).
Pode-se asseverar, também, a mitigação ao princípio da
indisponibilidade, segundo o qual, em linhas gerais, não é dado ao Ministério
Público desistir no curso da ação penal, sob a perspectiva de aplicação do ANPP
aos processos em curso ao tempo do início da vigência do ANPP no ordenamento
jurídico (Lei n. 13.964/2019, em 23/1/2020), consoante decidido no julgamento
do HC 185.913/DF pelo STF.
Todavia, o CPP não disciplinou expressamente a
possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal no âmbito da ação
penal privada, o que gerou controvérsia doutrinária e jurisprudencial. A
despeito da lacuna normativa, a extensão por analogia do ANPP à ação penal
privada deve ser admitida, pelos seguintes fundamentos:
a) O interesse público subjacente à ação penal privada -
Ainda que o direito de ação seja atribuído ao ofendido, a persecução penal
continua sendo uma manifestação do ius puniendi estatal, sendo inalienável ao
particular. O querelante não age em nome de um direito material próprio, mas
sim no exercício de um direito de substituição processual.
b) O princípio da isonomia entre réus de ações penais
públicas e privadas - Negar o ANPP a crimes de ação penal privada, nos casos em
que todos os requisitos legais estão preenchidos, significaria conceder
tratamento mais gravoso a acusados que se encontram em situações fáticas
idênticas, o que violaria o princípio da igualdade substancial.
c) O caráter restaurativo e desjudicializante da política
criminal contemporânea - O ANPP visa a garantir uma justiça penal mais
eficiente e menos punitivista, fomentando a reparação do dano e prevenindo o
encarceramento desnecessário. Se há espaço para essa abordagem na ação penal
pública, com maior razão deve ser admitida na ação penal privada, que, por sua
própria natureza, confere ao ofendido um juízo de conveniência sobre a
persecução penal.
Dessa forma, a ausência de previsão expressa não pode ser
interpretada como proibição, devendo-se reconhecer a aplicação do acordo de não
persecução penal na ação penal privada por analogia in bonam partem.
Quanto a legitimidade para a propositura do acordo, ainda
que se reconheça a titularidade da ação penal privada pelo ofendido, a doutrina
e a jurisprudência têm apontado que esse direito não é absoluto e deve ser
exercido dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o
querelante não pode recusar arbitrariamente um acordo de não persecução penal,
pois a persecução penal não pode ser utilizada como um instrumento de vingança
privada. Nesse sentido, o Ministério Público, como custos legis, pode e deve
atuar subsidiariamente nos seguintes casos:
a) Recusa injustificada do querelante - Quando o
querelante, sem fundamentação razoável, se recusar a ofertar o ANPP, ainda que
estejam preenchidos os requisitos legais, o Ministério Público deve intervir
para impedir que a persecução penal se torne um instrumento de abuso.
b) Silêncio ou inércia do querelante - Na hipótese de
omissão do querelante diante da proposta de ANPP, o Ministério Público pode
supletivamente ofertá-la, garantindo que o processo penal atenda a uma
finalidade justa e racional.
c) Propostas abusivas e desproporcionais - Caso o
querelante imponha exigências irrazoáveis ou desproporcionais para a celebração
do acordo, inviabilizando sua efetivação, caberá ao Ministério Público intervir
para garantir que os parâmetros legais sejam respeitados.
A função do Ministério Público, nesse contexto, não se
confunde com a titularidade da ação penal. Sua atuação ocorre de forma
supletiva e excepcional, apenas para garantir que o instituto do ANPP seja
aplicado de maneira justa e eficaz.
Note-se que parte da resistência à tese da legitimidade
supletiva do Ministério Público decorre do entendimento consolidado deste
Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em ações penais privadas, a
transação penal só pode ser proposta pelo querelante. Contudo, o acordo de não
persecução penal possui natureza jurídica distinta da transação penal, o que
justifica uma abordagem diferenciada. Assim, a jurisprudência do STJ sobre a
transação penal não pode ser aplicado automaticamente ao ANPP, sob pena de se
comprometer a coerência do sistema penal.
Quanto ao momento para oferecer o ANPP, por interpretação
sistemática ao contido no art. 28-A do CPP e seus parágrafos, especialmente o §
8º e o § 10, tem-se que, em regra, é anterior ao oferecimento da denúncia. Na
prática, porém, a certeza do investigado quanto à falta de propositura do ANPP
ocorre quando citado para responder à acusação. Assim, precedentes desta Corte
admitem que na fase da resposta à acusação, primeiro momento processual para
manifestação da defesa do acusado, o agora denunciado possa manifestar-se pelo
cabimento do acordo.
Sucede que a definição dos momentos processuais para o
acordo de não persecução penal na ação penal privada perpassa a interpretação
sistemática do art. 28-A do CPP com os arts. 105 e 106 do Código Penal e o art.
51 do CPP, que consagram o princípio da disponibilidade. A ação penal privada
rege-se pelo princípio da oportunidade, conferindo ao querelante ampla margem
de disponibilidade sobre a persecução penal, podendo, inclusive, renunciar ao
direito de queixa, perdoar o querelado ou realizar composição civil em qualquer
fase do processo.
Se o querelante pode exercer atos ainda mais abrangentes,
como desistir integralmente da persecução penal, segue-se que também pode
firmar um acordo de não persecução penal, ato de menor impacto dentro da mesma
esfera de atuação, até o trânsito em julgado, pois este representa uma
alternativa intermediária que não extingue de plano o direito de punir, mas
apenas o condiciona ao cumprimento de determinadas obrigações. Dessa forma, não
há justificativa lógica ou principiológica para restringir a possibilidade do
querelante formalizar um ANPP em momento posterior ao recebimento da queixa.
Ressalte-se que essa interpretação vale para as
iniciativas do querelante, pois a atuação do Ministério Público na ação penal
privada é excepcional, limitando-se à fiscalização da ordem jurídica e
intervenção supletiva quando houver inércia do autor da queixa-crime.
Nessa conformidade, a legitimidade ministerial para
propor o ANPP decorre do art. 45 do CPP, que lhe confere função de custos
legis, mas essa atuação deve ocorrer na primeira oportunidade processual, sob
pena de preclusão. Esse entendimento assegura a coerência do sistema acusatório
e a primazia do querelante na condução da ação penal privada, sem esvaziar o
papel fiscalizador do Ministério Público.
Em suma:
É cabível acordo de não persecução penal em ação
penal privada, mesmo após o recebimento da denúncia, tendo o Ministério Público
legitimidade supletiva para propor a medida quando houver inércia ou recusa
infundada do querelante.
STJ. 5ª
Turma. REsp 2.083.823-DF, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 11/3/2025 (Info
843).
