sábado, 24 de maio de 2025
Não é possível ao hospital denunciar a lide aos médicos responsáveis pelos atendimentos a paciente, aos quais é imputada a prática de erro médico
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina passou mal com dores no
peito e foi atendida no Hospital Esperança.
Na primeira vez, João, o médico
plantonista, receitou apenas analgésico e a mandou de volta para casa, sem
realizar os exames adequados.
No dia seguinte ela voltou ao
hospital, foi novamente medicada por outro médico plantonista (Pedro), que
também não fez qualquer exame e, depois de algum tempo, deu alta.
Isso se repetiu por mais outros
dois dias.
No quinto dia, Regina sentiu-se
mal novamente e procurou desta vez outra unidade de saúde. Ali foi
diagnosticada com um quadro grave de tromboembolismo pulmonar, sendo
imediatamente internada.
Diante desse contexto, ela ajuizou ação contra o Hospital
Esperança alegando negligência na conduta dos médicos plantonistas e má
prestação dos serviços hospitalares.
Citado, o Hospital argumentou que os fatos decorreriam de
atos individuais dos quatro médicos que prestaram os atendimentos, razão pela
qual requereu a denunciação da lide a esses profissionais.
Cabe denunciação da lide neste caso? É possível a
denunciação da lide, requerida pelo hospital, aos médicos responsáveis pelos
atendimentos a paciente, aos quais é imputada a prática de erro médico?
NÃO.
Denunciação da lide
A denunciação da lide é uma modalidade de intervenção de
terceiros, na qual o denunciante (autor ou réu da ação principal) promove, no
mesmo processo em que litiga com o seu adversário, uma ação de regresso
antecipada, caso sofra uma condenação. Todavia, não será cabível em toda e
qualquer demanda, existindo exceções na própria lei, como, por exemplo, a que
veda essa hipótese de intervenção nas relações de consumo (art. 88 do CDC).
O caso concreto é uma relação de consumo e existe vedação
expressa no CDC
A relação entre a paciente e o hospital configura claramente
uma relação de consumo, atraindo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor
(CDC), inclusive de seu art. 88, que veda expressamente a denunciação da lide:
Art. 88. Na hipótese do art. 13,
parágrafo único deste código, a ação de regresso poderá ser ajuizada em
processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos,
vedada a denunciação da lide.
Embora o art. 88 do CDC mencione especificamente a
vedação à denunciação da lide nas hipóteses do art. 13 (responsabilidade do
comerciante por fato do produto), a jurisprudência pacífica do STJ estende essa
vedação a todas as hipóteses de responsabilidade por acidentes de consumo
(arts. 12 e 14 do CDC), incluindo casos de erro médico. Nesse sentido:
A jurisprudência desta Corte é firme em asseverar o não
cabimento do instituto da denunciação da lide (art. 88 do CDC), que não se
restringe às hipóteses de fato do produto ou serviço, aplicando-se, inclusive,
aos casos de acidentes de consumo (arts. 12 e 14 do CDC).
STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp n. 2.134.523/SP, Rel. Min. Moura
Ribeiro, julgado em 3/4/2023.
Teoria do Risco da Atividade
Deve-se aplicar aqui a teoria do risco da atividade,
segundo a qual o hospital, como fornecedor de serviços, assume os riscos da
atividade econômica que desempenha. Por essa razão, o hospital deve responder objetivamente
pelos danos causados no contexto da prestação de seus serviços,
independentemente da apuração de culpa individual dos profissionais envolvidos.
Proteção à celeridade processual
Permitir a denunciação da lide atrasaria
consideravelmente o processo, prejudicando a paciente (consumidora) que já
espera por uma solução judicial há anos.
Complexidade processual e ônus da prova
A denunciação da lide traria complexidade desnecessária
ao processo, considerando que:
• A consumidora teria que litigar contra o hospital e
mais quatro médicos simultaneamente;
• O regime de distribuição do ônus da prova seria
dificultado, com apuração de responsabilidade objetiva (hospital) e subjetiva
(médicos) no mesmo processo;
• Haveria potencial multiplicação de provas e atos
processuais.
Possibilidade de ação regressiva autônoma
O hospital não ficará desamparado, pois tem sempre a
possibilidade de ajuizar ação de regresso em face dos profissionais de saúde
que agiram com culpa, conforme previsto no art. 88 do CDC e no art. 125, § 1º
do CPC, sem prejudicar o andamento da ação principal movida pela consumidora:
Art. 125 (...)
§ 1º O direito regressivo será
exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar
de ser promovida ou não for permitida.
Jurisprudência consolidada do STJ
Existem diversos julgados do STJ nos quais já se assentou
a impossibilidade de denunciação da lide em casos semelhantes:
O Código de Defesa do Consumidor aplica-se aos serviços médicos,
inclusive quanto à vedação da denunciação da lide, prevista no art. 88.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.630.070/SP, Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira, julgado em 7/6/2021.
A responsabilidade do hospital por danos decorrentes dos
serviços neles prestados é objetiva, nos termos do art. 14 do CDC e independe
da demonstração de culpa dos profissionais médicos envolvidos no atendimento.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 958.733/SP, Rel. Min. Marco Buzzi,
julgado em 24/4/2018.
Em suma:
Não é possível ao hospital denunciar a lide aos
médicos responsáveis pelos atendimentos a paciente, aos quais é imputada a
prática de erro médico.
STJ. 3ª Turma. REsp 2.160.516-CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para
acórdão Min. Humberto Martins, julgado em 1º/4/2025 (Info 846).
Treine o assunto estudado:
Ano: 2024 Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV
Prova: FGV - SES - Advogado - 2024
Capitolina de Assis entrou em trabalho de parto e procurou o
Hospital Particular XYZ na parte da manhã do dia 06 de março, mas o parto só
foi realizado na noite do dia 07 de março. Devido à falta de acompanhamento
diligente dos médicos Bento Casmurro (ginecologista e obstetra) e Machado Bento
(pediatra), o nascimento de seu filho, Ezequiel, foi permeado fetal, no qual
foram verificadas a falta de oxigenação, a asfixia perinatal e a aspiração de
mecônio. As intercorrências produziram danos irreparáveis em Capitolina e
Ezequiel.
Sobre a hipótese apresentada, sabendo que Capitolina pagou
todo o procedimento e que não utilizou o sistema público de saúde ou qualquer
plano de saúde, com base no ordenamento jurídico brasileiro, assinale a
afirmativa correta.
D) Os médicos, caso eles sejam empregados, estarão isentos de
responsabilidade, devido ao encargo exclusivo do Hospital. (Incorreto)
