Dizer o Direito

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Crimes de violação de domicílio e lesão corporal em contexto de violência doméstica devem ser tratados como autônomos, sem aplicação do princípio da consunção

Imagine a seguinte situação hipotética:

Lucas e Andreza mantiveram um relacionamento amoroso por aproximadamente dois anos.

O relacionamento era marcado por ciúmes excessivos por parte de Lucas.

Após diversos episódios de discussões intensas, Andreza decidiu terminar o relacionamento e pediu que Lucas não frequentasse mais sua residência, devolvendo a chave que ele possuía.

Em uma tarde de agosto de 2021, Lucas consumiu bebidas alcoólicas em um bar próximo à residência de Andreza. Durante esse período, recebeu informações de um conhecido de que havia visto um homem entrando na casa de sua ex-namorada. Tomado por ciúmes e sob efeito de álcool, Lucas dirigiu-se à residência de Andreza por volta das 16h50.

Ao chegar, Lucas bateu na porta violentamente, exigindo que Andreza abrisse. Como ela se recusou a atender, alegando que não queria contato, Lucas começou a chutar a porta com força até conseguir arrombá-la, invadindo a residência contra a vontade expressa da vítima.

Uma vez dentro da casa, Lucas iniciou uma discussão acusando Andreza de estar com outro homem, embora ela estivesse sozinha. A discussão escalou rapidamente e, em um acesso de raiva, Lucas agarrou Andreza pelo pescoço e a agrediu fisicamente, causando-lhe hematomas no pescoço, no antebraço direito e trauma no punho, conforme posteriormente documentado em exame pericial.

Os gritos de Andreza alertaram os vizinhos, que intervieram para socorrê-la.

Lucas fugiu do local quando percebeu a chegada de outras pessoas.

Andreza então registrou boletim de ocorrência e solicitou medidas protetivas de urgência.

 

Ação penal

Lucas foi denunciado e posteriormente condenado pelos crimes de:

• Violação de domicílio qualificada (art. 150, §1º do Código Penal):

Violação de domicílio

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

(...)

 

• Lesão corporal em contexto de violência doméstica (art. 129, §9º do Código Penal):

Art. 129. (...)

Violência Doméstica

§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

 

Em sua defesa, Lucas alegou que deveria ser condenado apenas pelo crime de lesão corporal, argumentando que a invasão de domicílio teria sido apenas um meio para cometer a agressão (princípio da consunção).

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

O STJ decidiu que Lucas deveria ser condenado pelos dois crimes em concurso material, rejeitando a aplicação do princípio da consunção.

Inicialmente, é importante registrar que a jurisprudência do STJ admite a aplicação do princípio da consunção mesmo quando o crime absorvido for, em tese, mais grave, desde que ele seja utilizado como mero instrumento para a realização de um objetivo final único. Nesse sentido: STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 100.322/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 25/2/2014, DJe de 7/3/2014.

Essa linha interpretativa também se reflete no enunciado da Súmula n. 17/STJ, segundo o qual é admissível a absorção do crime-meio pelo crime-fim quando aquele estiver integralmente exaurido neste último e não apresentar mais potencialidade lesiva.

Todavia, essa diretriz não se aplica nas hipóteses em que os crimes em questão tutelam bens jurídicos diversos, como ocorre nas situações em que o crime de invasão de domicílio — cuja finalidade é proteger a privacidade, o sossego e a tranquilidade do indivíduo — é cometido de maneira autônoma, antes ou depois da prática de lesão corporal (ou outro delito correlato), especialmente no contexto de violência doméstica e familiar de cunho misógino. Nesse caso, prevalece a topografia normativa específica prevista nos arts. 5º e 7º, ambos da Lei n. 11.340/2006, sem qualquer correspondência com a hipótese de progressão criminosa.

Com efeito, o mandado de criminalização delineado pelo legislador no art. 150, § 1º, do Código Penal, é claro ao estabelecer:

Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

[...]

§ 1º – Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

 

No caso concreto, o réu, valendo-se da relação doméstica e afetiva e atuando sob motivação de gênero e violência, invadiu a residência de sua ex-namorada sem o consentimento desta, ao arrombar a porta com chutes. No mesmo episódio, movido por ciúmes e sob efeito de álcool, agrediu fisicamente a vítima, segurando-a pelo pescoço e causando lesões corporais, posteriormente comprovadas por laudo pericial.

Dessa forma, observa-se que o ingresso forçado na residência foi motivado pela inconformidade do agente com a presença de um suposto terceiro no local, configurando evidente violação da liberdade da vítima, em especial à sua inviolabilidade domiciliar — bem jurídico autônomo e desvinculado da lesão corporal subsequente.

Portanto, como o crime de violação de domicílio não constituiu meio necessário à preparação ou à execução do crime de lesão corporal, não se aplica o princípio da consunção.

 

Nesse mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:

É inviável o reconhecimento da consunção entre o delito de violação de domicílio e o de lesão corporal no âmbito doméstico quando um não constitui meio para a execução do outro, mas evidentes infrações penais autônomas, que tutelam bens jurídicos distintos.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.902.294/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 2/3/2021, DJe de 8/3/2021.

 

Concluir em sentido contrário, como pleiteia a defesa, implicaria oferecer uma proteção estatal insuficiente aos bens jurídicos tutelados pelos arts. 129, § 9º, e 150, § 1º, do Código Penal, em consonância com os comandos cogentes dos arts. 5º e 7º da Lei n. 11.340/2006. Tal interpretação seria incompatível com o modelo de garantismo penal integral (não hiperbólico e monocular), o qual é sustentado pela evolução da dogmática penal à luz da vitimologia, em sua vertente primária e secundária.

Essa diretriz é, inclusive, acolhida na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às Vítimas da Criminalidade, aprovada pela Resolução nº 40/34 da ONU, de 29 de novembro de 1985.

 

Em suma:

Por tutelarem objetividades jurídicas distintas, não se aplica o princípio da consunção na hipótese em que o crime de invasão de domicílio é seguido, ou até mesmo precedido, do crime de lesões corporais, no deletério contexto permeado pela violência de gênero doméstica ou familiar e sem qualquer correspondência à situação de progressão criminosa. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.711.392-SC, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), julgado em 12/3/2025 (Info 846).


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