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terça-feira, 20 de maio de 2025

É inconstitucional o § 4º do art. 39 da Lei 12.844/2013 que presume a legalidade da aquisição e a boa-fé do adquirente de ouro

Requisitos trazidos pelo art. 39 da Lei nº 12.844/2013 para a primeira aquisição de ouro

O art. 39 da Lei nº 12.844/2013 estabelece regras sobre a comprovação da legalidade da primeira aquisição de ouro, visando controlar e fiscalizar a origem do ouro comercializado no Brasil.

A “primeira aquisição de ouro” refere-se ao momento em que o ouro, após ser extraído (geralmente em garimpos), é comprado pela primeira vez por uma instituição autorizada, integrante do Sistema Financeiro Nacional, como uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), que são empresas autorizadas pelo Banco Central do Brasil.

 

Regras do caput do art. 39

A primeira aquisição de ouro (isto é, diretamente do garimpeiro, mineradora ou cooperativa) precisa ser feita com:

1) Documentação do vendedor: nota fiscal emitida por cooperativa ou, no caso de pessoa física, recibo de venda e declaração de origem do ouro contendo:

• Área de lavra;

• Estado/DF e município de origem;

• Número do processo administrativo no órgão gestor de recursos minerais;

• Número do título autorizativo de extração.

 

2) Documentação do comprador: nota fiscal de aquisição emitida pela instituição autorizada pelo Banco Central a realizar a compra do ouro.

 

Além disso, exige-se o cadastro completo do vendedor (CPF/CNPJ, RG, número de registro etc.), arquivamento dos documentos por 10 anos e impõe que a veracidade das informações é responsabilidade do vendedor (§ 1º a 3º do art. 39).

 

Por que se exige que essa aquisição seja feita por instituição autorizada pelo Banco Central?

De acordo com a Lei nº 7.766/1989 e com regulamentações do Banco Central, o ouro pode ser classificado de duas formas:

• Bem físico (commodity): ouro comprado, por exemplo, para joalheria.

• Ativo financeiro ou instrumento cambial: quando negociado em forma pura (ouro fino) com liquidez, geralmente entre instituições financeiras ou em operações de investimento.

 

Quando o ouro é negociado como ativo financeiro, somente instituições autorizadas pelo Banco Central podem atuar nessas operações de compra direta.

A pessoa física pode comprar ouro, mas não diretamente de garimpeiros ou mineradoras, como ativo financeiro, salvo em situações muito específicas e com registro correto da operação.

A razão é o risco de que o ouro de origem ilegal (garimpos ilegais, áreas indígenas etc.) seja escoado no mercado formal.

 

Presunção de legalidade e boa-fé na compra de ouro por instituições autorizadas (§ 4º do art. 39)

De acordo com o § 4º do art. 39, se a instituição compradora do ouro (por exemplo, uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários – DTVM) arquiva corretamente todos os documentos exigidos nos §§ 1º e 2º, ela se presume de boa-fé.

Em outras palavras, o § 4º do art. 39 criou uma presunção legal favorável à compradora de ouro (instituição autorizada), desde que os documentos exigidos estejam devidamente arquivados.

Essa presunção é relativa (juris tantum), ou seja, pode ser afastada por prova em contrário, mas transfere o ônus da prova a quem alegar ilegalidade.

Veja a redação do § 4º:

Art. 39 (...)

§ 4º Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro.

 

ADIs

Três partidos políticos propuseram ações diretas de inconstitucionalidade contra o art. 39 da Lei 12.844/2013, em especial seu § 4º, que permite a presunção de legalidade do ouro adquirido e de boa-fé da pessoa jurídica adquirente.

Os partidos sustentaram que a norma facilitava a comercialização de ouro de origem ilegal, especialmente o extraído de terras indígenas e unidades de conservação na Amazônia, contribuindo para o aumento do desmatamento, da poluição (inclusive por mercúrio), com graves prejuízos à saúde das populações locais, em particular os povos indígenas, como os Ianomâmis.

Alegaram que a presunção de boa-fé reduzia a responsabilidade das Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) e esvaziava o papel fiscalizador do Estado, permitindo que ouro ilegal fosse “esquentado” e introduzido no mercado com aparência de licitude, fomentando o garimpo ilegal e suas nefastas consequências socioambientais e para a segurança pública.

 

O STF concordou com os argumentos invocados pelos autores?

SIM.

 

Violação ao dever de proteção do meio ambiente

A previsão impugnada viola o dever constitucional de proteção do meio ambiente, previsto no art. 225 da CF/88.

Este dispositivo cria um dever de proteção ambiental que vincula todos os Poderes do Estado, incluindo o Legislativo na elaboração de normas jurídicas.

 

Princípio da precaução

O princípio da precaução determina que, na dúvida sobre o potencial ofensivo de uma atividade para o meio ambiente, deve-se agir de forma a prevenir eventuais danos, mesmo que não haja certeza científica absoluta.

No contexto do julgamento, o Ministro ressaltou que a extração de minérios do subsolo é uma atividade inerentemente poluidora, que causa impactos negativos como:

• Desmatamento da área explorada;

• Impedimento de regeneração da vegetação;

• Poluição e assoreamento de cursos d'água.

 

As presunções estabelecidas no § 4º do art. 39 da Lei 12.844/2013 (legalidade do ouro adquirido e boa-fé da pessoa jurídica adquirente) são incompatíveis com o dever de proteção ambiental por duas razões fundamentais:

1) Sabotagem da efetividade do controle: as presunções legais sabotam a efetividade do controle de uma atividade inerentemente poluidora, uma vez que criaram um escudo jurídico para as instituições financeiras que adquiriam ouro sem a devida verificação da sua origem.

2) Incentivo à ilegalidade: a norma não apenas facilita, mas serve como um incentivo positivo à comercialização de ouro originário de garimpo ilegal, pois isenta as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) de responsabilidade, autorizando que elas não verifiquem efetivamente a legalidade da origem do metal.

 

Função do licenciamento e controle prévio

Justamente por ser potencialmente danosa ao meio ambiente, a extração de recursos minerais deve ser:

• Precedida de autorização, permissão ou licença do poder público;

• Orientada quanto à atividade de extração e à necessidade de recuperação da área afetada;

• Submetida a Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA/RIMA);

• Vistoriada pelo poder público para verificação das medidas de recuperação.

 

Ao estabelecer presunções legais que enfraquecem esse controle, a norma questionada vai na contramão dessas exigências constitucionais, criando um ambiente propício à expansão de atividades extrativas sem o devido controle e fiscalização.

 

Em suma:

É inconstitucional — pois afronta o dever de proteção ao meio ambiente (art. 225, CF/88) — dispositivo de lei federal que, ao modificar o processo de compra de ouro, presume a legalidade da aquisição e a boa-fé do adquirente.

STF. ADI 7.273/DF. ADI 7.345/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 24/03/2025 (Info 1170).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário do STF:

1) declarar a inconstitucionalidade do § 4º do art. 39 da Lei nº 12.844/2013;

2) determinou ao Poder Executivo federal, em especial à Agência Nacional de Mineração – ANM, ao Banco Central do Brasil – BACEN, ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio e à Casa da Moeda do Brasil – CMB, sem prejuízo da atuação de outros órgãos, dentro das respectivas áreas de competência, a adoção de medidas regulatórias e/ou administrativas de forma a inviabilizar a extração e a aquisição de ouro garimpado em áreas de proteção ambiental e terras indígenas, estabelecendo, inclusive, diretrizes normativas para a fiscalização do comércio do ouro, especialmente quanto à verificação da origem legal do ouro adquirido por Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários.


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