quinta-feira, 27 de novembro de 2025
Roubo praticado mediante uma única conduta contra vítimas distintas, ainda que da mesma família, configura concurso formal de crimes
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Carlos e Rodrigo invadiram uma
residência onde moravam João e sua esposa Regina.
Mediante grave ameaça com arma de
fogo, os assaltantes subtraíram diversos bens da casa: um carro, uma televisão,
um notebook, joias, roupas e outros objetos.
O Ministério Público ofereceu
denúncia contra Carlos e Rodrigo pela prática de roubo majorado, sustentando
que houve concurso formal de crimes, uma vez que foram violados os patrimônios
de duas vítimas distintas (João e Regina), ainda que mediante uma única conduta.
Roubo
Art. 157 - Subtrair coisa móvel
alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou
depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de
resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez
anos, e multa.
(...)
§ 2º-A A pena aumenta-se de 2/3
(dois terços):
I – se a violência ou ameaça é
exercida com emprego de arma de fogo;
(...)
O juiz condenou os réus, reconhecendo o concurso formal de
crimes previsto no art. 70 do Código Penal e aplicando a respectiva majorante
na dosimetria da pena:
Concurso formal
Art. 70. Quando o agente,
mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não,
aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas,
mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se,
entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes
concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo
anterior.
Parágrafo único - Não poderá a
pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
Os réus interpuseram apelação e o
Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso dizendo que não houve concurso
formal, mas sim crime único de roubo.
O TJ afirmou que que não seria
possível individualizar os bens subtraídos, ou seja, não se conseguia
determinar com precisão quais objetos pertenciam especificamente a João e quais
eram de Regina.
Segundo o TJ, como a denúncia
descreveu genericamente que os bens foram subtraídos “da residência das vítimas”
sem especificar a titularidade de cada objeto, e considerando que o casal
integrava o mesmo núcleo familiar, deveria ser reconhecida a prática de apenas
um crime de roubo.
Com essa decisão, o TJ excluiu a
causa de aumento prevista no art. 70 do CP, reduzindo substancialmente a pena
aplicada aos condenados.
Irresignado, o Ministério Público
interpôs recurso especial sustentando que a prática de crime de roubo mediante
uma única conduta contra vítimas distintas, ainda que da mesma família,
configura concurso formal de crimes, e não crime único. Argumentou que o
vínculo familiar não gera unidade patrimonial e que basta a comprovação de que
foram violados patrimônios de pessoas diferentes, sendo irrelevante a
individualização específica de cada bem subtraído.
O STJ concordou com os
argumentos do Ministério Público? Houve concurso formal de crimes?
SIM.
O Direito Penal brasileiro
adotou, como regra, a “Teoria da Vontade” para a caracterização do dolo,
definido como a vontade livre e consciente de alcançar determinado desfecho,
contida na expressão “quando o agente quis o resultado” (art. 18, I, do Código
Penal).
Já para o dolo eventual, o Código
Penal filiou-se à “Teoria do Assentimento” ou do “Consentimento”,
configurando-se essa modalidade de dolo quando o agente, ainda que não
pretendesse diretamente certo resultado, com ele consente, nos termos da
expressão "assumiu o risco de produzi-lo [o resultado]", existente na
parte final do mesmo inciso I do art. 18 do Código Penal.
Nesse contexto, tratando-se o
roubo de um crime contra o patrimônio e cometida a sua realização mediante uma
única conduta, deverá o intérprete verificar se a vontade do agente se dirigiu
contra o patrimônio de mais de uma vítima, ainda que tal direcionamento tenha
se dado na forma de risco plausível de o patrimônio pertencer a diferentes
pessoas (dolo eventual).
Portanto, se, com o objetivo de
subtrair coisa alheia móvel mediante violência ou grave ameaça, o agente
adentra uma residência na qual (i) reside mais de uma pessoa, (ii) encontra
mais de uma pessoa ou, (iii) por qualquer outra forma, tem a consciência ou
pode prever que está a violar o patrimônio de mais de uma pessoa, não é
possível cogitar da ocorrência de crime único.
O raciocínio não pode ser
excluído da situação em que os bens pertencem a diferentes pessoas de uma mesma
família e vale para qualquer contexto em que praticados os crimes por meio da
mesma ação ou omissão, tais como a abordagem de duas ou mais pessoas em via
pública, em restaurante, em veículo ou em transporte coletivo.
Sempre que o bem jurídico violado
pertencer a diferentes pessoas, cada qual constituído em patrimônio que recebe proteção legal própria, não se
pode pensar na incidência do crime único.
Vale ressaltar, aliás, que a
aplicação do concurso formal é uma espécie de “favor do legislador”,
considerando que, mesmo tendo sido praticado mais de um crime, as penas não
serão somadas, sendo aplicada apenas uma causa de aumento de pena do art. 70.
A jurisprudência do STJ é
pacífica no sentido de que, mesmo quando os patrimônios atingidos sejam da
mesma família, deve-se reconhecer o concurso formal:
Não há crime único quando, em um mesmo contexto, são subtraídos
bens pertencentes a pessoas diferentes, ainda que da mesma família; incide o
art. 70, primeira parte, do CP.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp
2.654.780/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 27/8/2024.
A subtração, mediante uma única ação, de bens de vítimas
distintas da mesma família não configura crime único, mas concurso formal.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 752.776/SC, Rel. Min. Messod Azulay
Neto, julgado em 6/3/2023.
Seria absoluto contrassenso
tornar a conduta mais branda pela simples razão de as vítimas serem da mesma
família, distinção que, além de desproporcional e ofensiva ao princípio da
proibição da proteção deficiente, não contaria com suporte legal.
Ao contrário do que concluiu o
Tribunal de origem, é desnecessária a individualização dos bens de cada vítima
no contexto fático, sendo obrigatória a exasperação oriunda do concurso formal,
previsto no art. 70 do Código Penal.
Voltando ao caso concreto:
No caso julgado, o STJ reconheceu
o concurso formal próprio, porque os assaltantes invadiram a residência
e subtraíram os bens mediante uma única conduta, violando os patrimônios de
João e Regina, mas não havia comprovação de que agiram com desígnios autônomos
em relação a cada patrimônio. Eles tinham um objetivo único: roubar bens
daquela casa. O fato de esses bens pertencerem a pessoas diferentes não
significa que havia vontades separadas para cada vítima, mas sim que uma única
ação criminosa atingiu múltiplos patrimônios.
Se tivesse sido comprovado que os
agentes agiram com desígnios autônomos – ou seja, com vontades distintas e
específicas de violar o patrimônio de cada vítima separadamente – aí sim
estaria configurado o concurso formal impróprio, com a consequente soma das
penas.
Tese fixada:
STJ. 3ª Seção.
REsp 1.960.300-GO, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 8/10/2025 (Recurso
Repetitivo - Tema 1192) (Info 868).

