terça-feira, 26 de março de 2019

Companhia aérea deve ser condenada a pagar indenização por danos morais caso o passageiro com deficiência seja obrigado a entrar no avião carregado no colo


Imagine a seguinte situação hipotética:
João possui paraplegia dos membros inferiores e, em razão disso, necessita de cadeira de rodas.
Ele adquiriu uma passagem aérea de Porto Alegre (RS) para Brasília (DF).
No momento do embarque, no entanto, houve um problema para João entrar na aeronave.
A entrada neste voo não ocorreu por meio da ponte de embarque (conhecida como “finger”), ou seja, aquela ponte que faz a ligação entre o terminal e o avião e que fica na mesma altura da entrada da aeronave, de forma que os passageiros precisam apenas andar por uma espécie de “túnel” até a entrada do avião.
Como a aeronave estava pousada longe do terminal, o embarque ocorreu do modo “antigo”, ou seja, os passageiros pegaram um ônibus que os levou até o avião e lá chegando tiveram que subir as escadas para entrar na aeronave.
João foi no ônibus até o avião, mas lá chegando, não havia nenhum mecanismo adequado para permitir que ele ingressasse na aeronave. E quais seriam esses mecanismos?
Poderia ser uma rampa móvel:


Ou um “ambulift”, que é um veículo com uma plataforma que eleva a pessoa com cadeira de rodas para que ela fique na mesma altura da aeronave e entre normalmente no avião:


Como não havia rampa móvel ou “ambulift”, os funcionários na companhia aérea subiram as escadas carregando João no colo.
Alguns dias após esse fato, João ajuizou ação de indenização por danos morais contra a companhia aérea argumentando que o tratamento dispensado para que ele ingressasse na aeronave foi inseguro e vexatório, tendo havido má prestação dos serviços.
A companhia aérea apresentou contestação na qual alegou que o defeito no serviço decorreu da culpa de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC). Isso porque seria da INFRAERO (empresa pública federal responsável pela administração do aeroporto) o dever de disponibilizar os meios de acesso à aeronave.

O STJ concordou com o pedido formulado pelo consumidor?
SIM.

Da garantia de acessibilidade à pessoa com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro
A proteção aos direitos humanos passou de uma fase de universalização para a atual etapa de especificação, na qual é feita a individualização dos grupos titulares de tais prerrogativas dentro de suas especificidades, aprimorando-se os instrumentos de proteção às minorias.
Parte-se, então, para um esforço conjunto dos atores globais para valorizar de forma singularizada o sujeito de direitos.
É diante desse contexto que surge a preocupação específica com as pessoas com deficiência, promovendo-se políticas para assegurar a tais indivíduos o gozo da vida de maneira mais próxima possível da plenitude.

Documentos de proteção às pessoas com deficiência
Essa preocupação manifestou-se no cenário internacional e nacional, sendo possível destacar alguns atos normativos editados com o propósito de proteger as pessoas com deficiência:
Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência (1999):
Promulgada pelo Decreto nº 3.956/2001.
Este instrumento previu o comprometimento dos países signatários em adotar medidas legislativas para promover a integração da pessoa acometida por dificuldades, em toda sorte de serviços e instalações público e privados, especialmente o transporte.

Lei nº 10.098/2000:
Com o propósito de cumprir a determinação da Convenção Interamericana, o Congresso Nacional editou a Lei nº 10.098/2000, cuja função foi disciplinar os critérios para a promoção da acessibilidade para as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 5.296/2004.
No que tange à aviação civil, o Decreto estabeleceu o seguinte:
Da Acessibilidade no Transporte Coletivo Aéreo
Art. 44.  No prazo de até trinta e seis meses, a contar da data da publicação deste Decreto, os serviços de transporte coletivo aéreo e os equipamentos de acesso às aeronaves estarão acessíveis e disponíveis para serem operados de forma a garantir o seu uso por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Parágrafo único.  A acessibilidade nos serviços de transporte coletivo aéreo obedecerá ao disposto na Norma de Serviço da Instrução da Aviação Civil NOSER/IAC - 2508-0796, de 1º de novembro de 1995, expedida pelo Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica, e nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT.

Convenção Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência:
Promulgada pelo Decreto 6.949/2009, com status de emenda constitucional considerando que foi submetida ao tratamento previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88.
Nele se observa a preocupação acentuada em assegurar a acessibilidade do portador de cuidados especiais, de forma a afastar tratamento discriminatório, realçando não só a pura adequação dos meios para sua concretização, mas também que permitam a independência do indivíduo ao executar as tarefas do cotidiano.
Esse enfoque na autodeterminação é a tônica atual dada à proteção dos direitos das pessoas com deficiência. Com isso, abandona-se a antiquada e reprovável visão que tratava esses indivíduos como mero assunto de saúde pública.
A intenção atual, portanto, é o de garantir ao máximo a integração das pessoas com deficiência com vida comum, reduzindo situações embaraçosas e permitindo deslocamentos sem obstáculos. O objetivo final de tudo isso é promover a máxima inclusão.
A Flávia Piovesan resume bem as quatro fases na história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência:
1ª fase: foi uma época de intolerância em relação às pessoas com deficiência. A deficiência simbolizava impureza, pecado ou, mesmo, castigo divino;
2ª fase: marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência;
3ª fase: baseada em uma ótica assistencialista, pautada na perspectiva médica e biológica de que a deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco centrado no indivíduo “portador da enfermidade”;
4ª fase: orientada pelo paradigma dos direitos humanos, em que emergem os direitos à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em que ela se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos e barreiras superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício de direitos humanos. Isto é, nesta quarta fase, o problema passa a ser a relação do indivíduo e do meio, este assumido como uma construção coletiva. Nesse sentido, esta mudança paradigmática aponta aos deveres do Estado para remover e eliminar os obstáculos que impeçam o pleno exercício de direito das pessoas com deficiência, viabilizando o desenvolvimento de suas potencialidades, com autonomia e participação. (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 483)

Acessibilidade
A acessibilidade é princípio fundamental assumido pelo Brasil na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência que, conforme já explicado, possui status de norma constitucional.

Resolução da ANAC
Em âmbito infralegal, a questão é atualmente regulamentada pela Resolução nº 280/2013, da ANAC, que dispõe sobre os procedimentos relativos à acessibilidade de passageiros com necessidade de assistência especial ao transporte aéreo.
O art. 20 da Resolução prevê:
Art. 20. O embarque e o desembarque do PNAE que dependa de assistência do tipo STCR, WCHS ou WCHC devem ser realizados preferencialmente por pontes de embarque, podendo também ser realizados por equipamento de ascenso e descenso ou rampa.
§ 1º O equipamento de ascenso e descenso ou rampa previstos no caput devem ser disponibilizados e operados pelo operador aeroportuário, podendo ser cobrado preço específico dos operadores aéreos.
(...)

O § 4º do art. 20 da Resolução prevê que é “vedado carregar manualmente o passageiro, exceto nas situações que exijam a evacuação de emergência da aeronave.”

Companhias áreas são solidariamente responsáveis
Como vimos acima, o § 1º do art. 20 afirma que a obrigação fornecer o equipamento para embarque ou desembarque do passageiro com deficiência é do operador aeroportuário (em regra, a ANAC).
Apesar disso, o STJ afirma que essa previsão não tem o condão de eximir a companhia aérea da obrigação de garantir o embarque seguro e com dignidade da pessoa com dificuldade de locomoção.
Afinal de contas, a companhia aérea integra a cadeia de fornecimento, de forma que possui responsabilidade solidária em caso de fato do serviço, nos termos do art. 14 do CDC.
O embarque ou desembarque indevido de pessoa com deficiência – que é carregado por não se dispor de mecanismo adequado para seu transporte – é caracterizado como fato do serviço (art. 14 do CDC). Isso porque se trata de defeito que ultrapassa a esfera meramente econômica do consumidor, atingindo-lhe a incolumidade física ou moral considerando o tratamento vexatório a que é submetido.
Logo, nos termos do art. 14 do CDC, o fornecedor de serviços (empresa de aviação) responde, objetivamente, pela reparação dos danos causados.

Não se trata de causa excludente de responsabilidade (fato de terceiro)
A companhia aérea não poderá se eximir alegando fato de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC). Isso porque o fato de terceiro somente será considerado excludente da responsabilidade civil do fornecedor quando for:
a) inevitável;
b) imprevisível; e
c) não guardar qualquer relação com a atividade empreendida pelo fornecedor.

Na hipótese, o constrangimento sofrido pelo passageiro guarda direta e estreita relação com o contrato de transporte firmado como a companhia de aviação.
As empresas de aviação sabem que, todos os dias, pessoas com deficiência pegam voos e, portanto, problemas com a sua acessibilidade estão na margem de previsibilidade e de risco desta atividade.
Neste contexto, não há como a concessionária de transporte aéreo invocar excludente de causalidade (art. 14, § 3º, II, do CDC), ao argumento de recair sobre terceiro a responsabilidade de assegurar a acessibilidade do cadeirante na aeronave, no caso a INFRAERO.

Em suma:
Companhia aérea é civilmente responsável por não promover condições dignas de acessibilidade de pessoa cadeirante ao interior da aeronave.
A sociedade empresária atuante no ramo da aviação civil possui a obrigação de providenciar a acessibilidade do cadeirante no processo de embarque, quando indisponível ponte de conexão ao terminal aeroportuário (“finger”).
Se não houver meio adequado (com segurança e dignidade) para o acesso do cadeirante ao interior da aeronave, isso configura defeito na prestação do serviço, ensejando reparação por danos morais.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.611.915-RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 06/12/2018 (Info 642).

Curiosidade: no caso concreto, foi fixada a indenização em R$ 15 mil.




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