sábado, 9 de dezembro de 2023

Não há dever legal de repor verbas recebidas de boa-fé para custear direitos fundamentais de natureza essencial

Imagine a seguinte situação hipotética:

Vitória, beneficiária do plano de saúde Alfa, foi diagnosticada com amiotrofia espinhal progressiva tipo I (AME), doença grave e rara.

Devido à complexidade do quadro clínico, a médica prescreveu a droga SPINRAZA (NUSINERSEN), como única terapia capaz de bloquear a degeneração neuronal, de modo a proporcionar à paciente ganhos motores e funcionais progressivos.

Ocorre que o plano de saúde se recusou a autorizar o custeio, argumentando que se trata de medicamento não registrado pela Anvisa.

Diante disso, Vitória ajuizou ação de obrigação de fazer contra o plano de saúde, pedindo que fosse condenado a custear todas as despesas que se fizessem necessárias para a importação do referido fármaco.

Vale ressaltar, mais uma vez, que, à época do ajuizamento da demanda (03/02/2017), o medicamento Spinraza (Nusinersena), apesar de já aprovado e registrado junto à Food and Drug Administration (FDA) norte-americana, ainda não possuía registro na Anvisa.

O juiz deferiu a liminar (tutela provisória de urgência).

Cerca de 6 meses após a liminar, houve a aprovação do registro do medicamento na Anvisa.

O magistrado prolatou sentença de procedência, confirmando a tutela outrora concedida.

O plano de saúde interpôs apelação.

O Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso decidindo que:

• no período anterior ao registro, o plano não estava obrigado a custear o medicamento; e

• no período posterior ao registro, o plano passou a estar obrigado.

 

O TJ aplicou o seguinte entendimento jurisprudencial:

As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.712.163-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 08/11/2018 (Recurso Repetitivo - Tema 990) (Info 638).

 

Exceção:

Se o medicamento prescrito pelo médico, embora se trate de fármaco importado ainda não registrado pela ANVISA, teve a sua importação excepcionalmente autorizada pela referida Agência Nacional, neste caso, ele será considerado como de cobertura obrigatória pela operadora de plano de saúde. Trata-se, portanto, de uma exceção ao que o STJ decidiu no Tema 990 acima exposto.

Resumindo: é de cobertura obrigatória pela operadora de plano de saúde, o medicamento que, apesar de não registrado pela ANVISA, teve a sua importação excepcionalmente autorizada pela referida Agência Nacional.

STJ. 3ª Turma. REsp 1943628-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/10/2021 (Info 717).

 

Até aí, tudo bem. Realmente, é a posição que prevalece na jurisprudência. O problema foi que o TJ determinou que Vitória reembolsasse o plano de saúde pelos gastos que ele teve nos 6 meses em que a liminar produziu efeitos mesmo sem o registro na Anvisa.

Inconformada, Vitória interpôs recurso extraordinário pedindo para que ela não seja condenada a ressarcir o plano pelas doses do medicamento fornecidas antes do registro da Anvisa e enquanto vigia a tutela de urgência.

 

O STF concordou com o pedido da autora? O recurso extraordinário foi provido?

SIM.

Conforme jurisprudência do STF, a parte autora não tem o dever legal de reembolsar as verbas recebidas de boa-fé para custear direitos fundamentais de natureza essencial.

Os medicamentos e tratamentos custeados pelo plano de saúde eram indispensáveis para assegurar o direito à vida e à saúde da autora. Além disso, ela recebeu tais produtos e serviços de boa-fé.

O Tribunal de origem, ao simplesmente transplantar a tese de julgamento do Tema 990 do STJ, sem considerar as peculiaridades do caso concreto, violou o princípio da segurança jurídica e, em especial, da proteção da confiança legítima, por ter desconsiderado a legítima expectativa da autora em relação aos efeitos dos sucessivos atos que lhe garantiram o tratamento de saúde pleiteado.

Diante desse cenário, não há que se falar em obrigação de restituir os valores.

 

Em suma:

Dada a proteção constitucional conferida ao direito à vida, à saúde e à boa-fé, o segurado de plano de saúde está isento de devolver produtos e serviços prestados em virtude de provimento jurisdicional para custear direitos fundamentais de natureza essencial, ainda que, à época do provimento, o medicamento ou serviço não possuíssem o respectivo registro nos órgãos competentes.

STF. 2ª Turma. RE 1.319.935 AgR ED/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 19/09/2023 (Info 1109).

 

Outro julgado no mesmo sentido:

Ante as peculiaridades do caso e em observância aos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé, bem como do direito constitucional à vida e à saúde, cabe ao plano de saúde custear o tratamento realizado pela agravada com o medicamento Revlimid no período que antecedeu o registro do referido fármaco na Anvisa.

STF. 2ª Turma. ARE 1307919 ED-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 1/6/2022.

 

Com base nesse entendimento, a Segunda Turma do STF, por unanimidade, deu provimento ao recurso extraordinário e restabeleceu a sentença que reconheceu o direito da segurada de receber e ter custeado o medicamento e tratamento indicados pelo relatório médico. Por conseguinte, o STF reformou o acórdão do TJ que entendia cabível a devolução dos valores referentes ao período em que não havia registro do medicamento na Anvisa.


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