sábado, 2 de dezembro de 2023

Se ficar reconhecido, em recurso da defesa, que a sentença condenou o réu por fatos que não estavam descritos na denúncia, cabe ao Tribunal absolver o acusado ou determinar que o MP faça o aditamento?

Emendatio libelli e mutatio libelli

Se tiver um tempinho, vamos relembrar as principais características e diferenças desses dois institutos. Em caso negativo, pode ir diretamente para a explicação do julgado logo após o quadro.

 

EMENDATIO LIBELLI

MUTATIO LIBELLI

Quando ocorre

Ocorre quando o juiz, ao condenar ou pronunciar o réu, altera a definição jurídica (a capitulação do tipo penal) do fato narrado na peça acusatória, sem, no entanto, acrescentar qualquer circunstância ou elementar que já não esteja descrita na denúncia ou queixa.

Quando ocorre

Ocorre quando, no curso da instrução processual, surge prova de alguma elementar ou circunstância que não havia sido narrada expressamente na denúncia ou queixa.

Requisitos

1) Não é acrescentada nenhuma circunstância ou elementar ao fato que já estava descrito na peça acusatória.

2) É modificada a tipificação penal.

Requisitos

1) É acrescentada alguma circunstância ou elementar que não estava descrita originalmente na peça acusatória e cuja prova surgiu durante a instrução.

2) É modificada a tipificação penal.

Exemplo

O MP narrou, na denúncia, que o réu, valendo-se de fraude eletrônica no sistema da internet banking, retirou dinheiro da conta bancária da vítima, imputando-lhe o crime de estelionato (art. 171 do CP). O juiz, na sentença, afirma que, após a instrução, ficou provado que os fatos ocorreram realmente na forma como narrada pelo MP, mas que, em seu entendimento, isso configura furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP).

Exemplo

O MP narrou, na denúncia, que o réu praticou furto simples (art. 155, caput, do CP). Durante a instrução, os depoimentos revelaram que o acusado utilizou-se de uma chave falsa para entrar na coisa furtada. Com base nessa nova elementar, que surgiu em consequência de prova trazida durante a instrução, verifica-se que é cabível uma nova definição jurídica do fato, mudando o crime de furto simples para furto qualificado (art. 155, § 4º, III, do CP).

Previsão legal

Prevista nos arts. 383, caput, e 418 do CPP:

Art. 383.  O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa (leia-se: muda a capitulação penal), ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.

Previsão legal

Prevista no art. 384 do CPP:

Art. 384.  Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

Procedimento

Se o juiz, na sentença, entender que é o caso de realizar a emendatio libelli, ele poderá decidir diretamente, não sendo necessário que ele abra vista às partes para se manifestar previamente sobre isso.

Tal se justifica porque no processo penal o acusado se defende dos fatos e como os fatos não mudaram, não há qualquer prejuízo ao réu nem violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença.

Procedimento

1) Se o MP entender ser o caso de mutatio libelli, ele deverá aditar a denúncia ou queixa no prazo máximo de 5 dias após o encerramento da instrução;

2) esse aditamento pode ser apresentado oralmente na audiência ou por escrito;

3) no aditamento, o MP poderá arrolar até 3 testemunhas;

4) será ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 dias. Nessa resposta, além de refutar o aditamento, a defesa poderá arrolar até 3 testemunhas;

5) o juiz decidirá se recebe ou rejeita o aditamento;

6) se o aditamento for aceito pelo juiz, será designado dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado e realização de debates e julgamento.

 

Obs: se o órgão do MP, mesmo surgindo essa elementar ou circunstância, entender que não é caso de aditamento e o juiz não concordar com essa postura, aplica-se o art. 28 do CPP.

Espécies de ação penal em que é cabível:

• ação penal pública incondicionada;

• ação penal pública condicionada;

• ação penal privada.

Espécies de ação penal em que é cabível:

• ação penal pública incondicionada;

• ação penal pública condicionada;

• ação penal privada subsidiária da pública.

Obs: somente o MP pode oferecer mutatio.

Emendatio libelli em 2º grau de jurisdição:

É possível que o tribunal, no julgamento de um recurso contra a sentença, faça emendatio libelli, desde que não ocorra reformatio in pejus (STJ HC 87984 / SC).

Mutatio libelli em 2º grau de jurisdição:

Não é possível, porque se o Tribunal, em grau de recurso, apreciasse um fato não valorado pelo juiz, haveria supressão de instância.

Nesse sentido é a Súmula 453-STF: Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou queixa.

 

Obs.1: a denúncia não precisa descrever as agravantes. Desse modo, caso a denúncia não narre determinada agravante, mesmo assim ela poderá ser reconhecida pelo juízo na sentença, sem necessidade de mutatio libelli.

Obs.2: se, após realizar a emendatio ou mutatio, o juiz perceber que há possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, ele deverá abrir vista ao MP para oferecer a proposta. Ex: o crime imputado era furto qualificado e foi realizada a emendatio para estelionato. Como o estelionato permite a suspensão condicional do processo, deve ser feita a proposta pelo MP, mesmo o processo já estando com a instrução encerrada.

Obs.3: se, após realizar a emendatio ou mutatio, a nova definição jurídica do crime acarretar a mudança da competência, o magistrado deverá declarar-se incompetente e encaminhar os autos ao juízo competente.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João.

Após a instrução, o juiz proferiu sentença condenando João por fatos que não estavam narrados na denúncia. Houve, portanto, mutatio libelli sem respeitar o art. 384 do CPP.

O réu interpôs apelação alegando ofensa ao princípio da correlação.

O princípio da correlação ou da congruência significa que a sentença não poderá condenar o acusado por fatos não narrados na denúncia ou queixa, sob pena de incorrer em decisão ultra ou extra petita, sendo isso causa de nulidade absoluta.

 

O Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para reconhecer que, de fato, houve violação ao princípio da correlação, considerando que realmente o réu foi condenado por fatos diversos daqueles que foram imputados na denúncia.

Diante disso, o TJ anulou a sentença e absolveu o réu.

O Ministério Público não se conformou interpôs recurso especial alegando o seguinte:

- tudo bem, aceito que houve violação ao princípio da correlação;

- no entanto, quando o Tribunal reconheceu essa violação, o que ele deveria ter feito era determinar o retorno dos autos ao primeiro grau, para que fosse observado o rito do art. 384 do CPP e o MP pudesse aditar a denúncia:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

 

O STJ concordou com os argumentos do Ministério Público?

NÃO.

O art. 384 do CPP afirma que “encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato (...) o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias”.

Desse modo, fica claro que o momento para o aditamento da denúncia é o encerramento da instrução.

Logo, foi correta a decisão do Tribunal de Justiça que, ao julgar a apelação da defesa, reconheceu que a sentença condenou o réu por fatos que não estavam descritos na denúncia e, como consequência, anulou a sentença e absolveu o réu, sem determinar o retorno dos autos ao primeiro grau, como pretende o Parquet.

Além disso, o retorno dos autos implicaria prejuízo para o réu e, portanto, violaria o princípio da non reformatio in pejus.

Esse entendimento já foi manifestado pelo STJ em outras ocasiões:

No julgamento de apelação interposta pela defesa, constatada a ofensa ao princípio da correlação, não cabe reconhecer a nulidade da sentença e devolver o processo ao primeiro grau para que então se observe o art. 384 do CPP, uma vez que implicaria prejuízo para o réu e violaria o princípio da non reformatio in pejus.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 559.214/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 13/5/2022.

 

Em suma:

Reconhecido, em recurso exclusivo da defesa, que a sentença condenou o réu por fatos que não estavam descritos na denúncia, cabe ao Tribunal somente anular a sentença e absolver o réu, mas não determinar o retorno dos autos ao primeiro grau.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.324.920/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 5/9/2023 (Info 789).

 

DOD Plus – informações complementares

Em caso de emendatio libelli é desnecessário o aditamento à denúncia

É lícito ao juiz alterar a tipificação jurídica da conduta do réu no momento da sentença, sem modificar os fatos descritos na denúncia, conforme a inteligência do art. 383 do CPP (emendatio libelli), sendo despicienda a abertura de prazo para aditamento, o que se exige na mutatio libelili do art. 384 do CPP.

Não constitui ofensa ao princípio da correlação entre a denúncia e a sentença condenatória o ato de magistrado singular, nos termos do art. 383 do CPP, atribuir aos fatos descritos na peça acusatória definição jurídica diversa daquela proposta pelo órgão da acusação.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 770256-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/10/2022 (Info 761).


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