sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O fato de o réu não ter confessado a prática do crime impede a remessa dos autos ao MP para avaliar a possibilidade de ANPP?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina tentou ingressar no presídio com droga escondida em sua região pélvica.

Foi presa em flagrante e denunciada por tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006).

Em juízo, a acusada manifestou o desejo de permanecer em silêncio.

Ao final da instrução, Regina foi condenada pelo crime, com a causa de diminuição do § 4º do art. 33, da LD. O juiz aplicou a pena de 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão, em regime inicial aberto, tendo sido a pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas de direito.

Inconformada, a condenada interpôs recurso de apelação argumentando que o Ministério Público deveria ter proposto a ela o acordo de não persecução penal (ANPP):

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

(...)

 

O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso defensivo alegando que a acusada não confessou a prática do crime e que a confissão é um dos requisitos objetivos necessários para a aplicação do ANPP.

A defesa discordou do acórdão e impetrou habeas corpus endereçado ao STJ afirmando que a ausência de confissão não impede, por si só, a remessa dos autos ao Ministério Público para que o ofereça a proposta de ANPP. Isso porque, depois de oferecida a proposta, a acusada poderia formalizar a confissão perante o Parquet, no ato de assinatura do acordo.

Diante disso, a defesa pediu a anulação do processo e que fosse determinada a intimação do Ministério Público para se manifestar sobre eventual interesse na propositura de ANPP, nos termos do art. 28-A do CPP.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM. Vamos entender com calma.

 

O MP denunciou a acusada pelo caput do art. 33 da LD, crime cuja pena mínima é superior a 4 anos. Logo, não cabia ANPP em razão da pena. No curso do processo, houve o reconhecimento da causa de diminuição de pena do § 4º do art. 33. Diante dessa alteração do enquadramento jurídico, a pena ficou abaixo de 4 anos. Com essa mudança superveniente, é possível oferecer o ANPP?

SIM. O tema já foi enfrentado pelo STJ:

É cabível ANPP em caso de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006)?

Em regra, não. Isso porque a pena mínima do crime de tráfico de drogas é de 5 anos, nos termos do caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

Contudo, se for reconhecida a aplicação da minorante do tráfico privilegiado (§ 4º do art. 33), aí sim caberá, em tese, o oferecimento de ANPP porque a pena mínima ficará abaixo de 4 anos.

Imagine agora que o réu foi denunciado pelo caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 (tráfico de drogas).

Decisão judicial posterior à denúncia reconhece que o agente era traficante privilegiado, merecendo o enquadramento no § 4º do art. 33 da LD, o que permitiria o ANPP.

O Ministério Público deverá ser intimado para possibilitar a proposta do ANPP.

O réu terá, em tese, direito ao ANPP porque o excesso de acusação (overcharging) não deve prejudicar o acusado.

STJ. 5ª Turma. HC 822.947-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 27/6/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).

 

Em sentido semelhante:

Nos casos em que houver a modificação do quadro fático-jurídico, e, ainda, em situações em que houver a desclassificação do delito - seja por emendatio ou mutatio libelli -, uma vez preenchidos os requisitos legais exigidos para o Acordo de Não Persecução Penal, torna-se cabível o instituto negocial.

Na situação em tela, houve uma relevante alteração do quadro fático-jurídico, tornando-se potencialmente cabível o instituto negocial do ANPP. Isso porque o TJ, ao julgar apelação interposta pela defesa, deu-lhe provimento, a fim de reconhecer a continuidade delitiva entre os crimes de falsidade ideológica (art. 299), tornando, assim, objetivamente viável a realização do referido acordo, em razão do novo patamar de apenamento - pena mínima cominada inferior a 4 anos.

Aplica-se aqui, mutatis mutandis, raciocínio similar àquele constante da Súmula 337 do STJ (É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva).

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.016.905-SP, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 7/3/2023 (Info 772).

 

Oportuno lembrar, também, que no julgamento do REsp 1.972.098/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, a Quinta Turma decidiu que “o réu fará jus à atenuante do art. 65, III, 'd', do CP quando houver admitido a autoria do crime perante a autoridade, independentemente de a confissão ser utilizada pelo juiz como um dos fundamentos da sentença condenatória, e mesmo que seja ela parcial, qualificada, extrajudicial ou retratada”, o que sobrelevou e desburocratizou o reconhecimento e a importância da confissão para o deslinde do processo penal.

 

Voltando ao caso concreto:

No caso, o Tribunal de Justiça decidiu que não poderia encaminhar os autos ao Ministério Público para que se manifestasse sobre a proposição do ANPP porque não houve confissão formal e circunstanciada da acusada (ela optou pelo exercício do direito ao silêncio).

Contudo, é de se destacar que, ao tempo da opção pela não autoincriminação (no momento do interrogatório), não estava no horizonte da acusada a possibilidade de ela celebrar ANPP, uma vez que a denúncia não postulou o reconhecimento da minorante do tráfico de drogas, o que só se tornou possível com a prolação da sentença penal condenatória que aplicou em seu favor a causa de diminuição de pena prevista no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

Em outras palavras, no momento do interrogatório, como não havia sido oferecido a ela a possibilidade de ANPP, não havia razões para ela confessar.

O direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere) não pode ser interpretado em desfavor do réu, sob pena de ofensa ao inciso LXIII do art. 5º da Constituição e parágrafo único do art. 186 do CPP.

Assim, a invocação do direito ao silêncio durante a persecução penal não pode impedir a incidência posterior do ANPP, caso a superveniência de sentença condenatória autorize objetiva e subjetivamente sua proposição.

Em verdade, mesmo que a acusada tivesse negado a autoria, ainda assim seria necessário que o MP oferecesse o acordo. Isso porque o ANPP é medida de natureza negocial, podendo o réu optar, ou não, pelas vantagens do ajuste.

O CPP, em seu art. 28-A, não determinou quando a confissão deve ser colhida, apenas que ela deve ser formal e circunstanciada. Assim, essa confissão pode ser feita perante o MP, caso a instituição ofereça o acordo e o réu decida aceitar.

 

Em suma:

A ausência de confissão formal e circunstanciada no curso da ação penal não impede a remessa dos autos ao Parquet para avaliar a possibilidade de propositura do acordo de não persecução penal, uma vez que essa confissão pode ser formalizada perante o Ministério Público, no ato de assinatura do acordo.

STJ. 5ª Turma. HC 837.239-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 26/9/2023 (Info 789).


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