sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Configura omissão inconstitucional do Poder Público a falta de oferta, com a mesma frequência e regularidade dos dias úteis, de transporte público coletivo gratuito nas zonas urbanas em dia de eleições

O caso concreto foi o seguinte:

O partido Rede Sustentabilidade ajuizou ADPF argumentando que muitos eleitores não têm condições econômicas de pagar o transporte no dia das eleições para votar.

Além disso, o autor argumentou que a frota do transporte coletivo costuma ser menor aos domingos.

Segundo a legenda, há, por parte de alguns municípios, uma política inconstitucional de não prover adequadamente transporte público e em frequência razoável para os eleitores. Citou, como exemplo, o caso de Porto Alegre, que teria suspendido o passe livre no dia das eleições, desde 1995.

Esse cenário faz com que as pessoas mais pobres sejam privadas do seu direito constitucional ao voto.

Em razão do exposto, o partido pediu que o STF determine aos municípios que garantam, nos dias das eleições, serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros gratuito em frequência maior ou igual à dos dias úteis.

 

Medida liminar

Em 29 de setembro de 2022, antes do primeiro turno das eleições de 2022, o Ministro Roberto Barroso, relator da ADPF, atendeu parcialmente o pedido para:

i) determinar ao Poder Público que mantivesse o serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros em níveis normais, sem redução específica no domingo das eleições, sob pena de crime de responsabilidade;

ii) vedar aos Municípios que já ofereciam o serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros gratuitamente, seja pelo domingo, seja pelo dia das eleições, que deixassem de fornecê-lo;

iii) autorizar o Poder Público municipal a determinar (e as concessionárias ou permissionárias do serviço público a promover) a disponibilização gratuita do serviço de transporte público urbano coletivo de passageiros em dias de realização de eleições, inclusive com linhas especiais para regiões mais distantes dos locais de votação. A autorização incluiu a possibilidade de utilização, para os mesmos fins, de ônibus escolares e outros veículos públicos.

 

No dia 18/10/2023, o STF julgou definitivamente o mérito da ação. O que ficou decidido? A ausência de transporte público gratuito e com frequência regular nos domingos de eleição viola a Constituição?

SIM.

Configura omissão inconstitucional do Poder Público a falta de oferta, com a mesma frequência e regularidade dos dias úteis, de transporte público coletivo gratuito nas zonas urbanas em dia de eleições.

STF. Plenário. ADPF 1013/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 18/10/2023 (Info 1113).

 

O fornecimento desse serviço já é previsto para os eleitores residentes em zonas rurais pela Lei nº 6.091/74 e pela Resolução TSE 23.669/2021 (ao estudar, confira sempre se a Resolução não foi substituída por uma mais atualizada).

Confira alguns trechos da Lei nº 6.091/74:

Art. 1º Os veículos e embarcações, devidamente abastecidos e tripulados, pertencentes à União, Estados, Territórios e Municípios e suas respectivas autarquias e sociedades de economia mista, excluídos os de uso militar, ficarão à disposição da Justiça Eleitoral para o transporte gratuito de eleitores em zonas rurais, em dias de eleição.

§ 1º Excetuam-se do disposto neste artigo os veículos e embarcações em número justificadamente indispensável ao funcionamento de serviço público insusceptível de interrupção.

§ 2º Até quinze dias antes das eleições, a Justiça Eleitoral requisitará dos órgãos da administração direta ou indireta da União, dos Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios os funcionários e as instalações de que necessitar para possibilitar a execução dos serviços de transporte e alimentação de eleitores previstos nesta Lei.

 

Art. 2º Se a utilização de veículos pertencentes às entidades previstas no art. 1º não for suficiente para atender ao disposto nesta Lei, a Justiça Eleitoral requisitará veículos e embarcações a particulares, de preferência os de aluguel.

Parágrafo único. Os serviços requisitados serão pagos, até trinta dias depois do pleito, a preços que correspondam aos critérios da localidade. A despesa correrá por conta do Fundo Partidário.

 

Não existe, contudo, uma lei que assegure a mesma garantia para os eleitores da zona urbana.

Assim, existe uma falha em assegurar o exercício do direito ao voto a todos os cidadãos. Essa omissão representa violação ao texto constitucional, mais especificamente ao art. 14 da CF/88, na medida em que é dever do Estado adotar medidas capazes de concretizar os direitos previstos na Constituição Federal, no caso, que todos tenham plenas condições de participar do processo eleitoral:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

(...)

 

A ausência de política pública com essa finalidade tem o potencial de criar, na prática, um novo tipo de voto censitário*, que retira dos mais pobres a possibilidade de participação no processo eleitoral, tendo em vista a extrema desigualdade social existente no Brasil.

 

* Voto censitário

O voto censitário é um tipo de voto que era comum em muitos países durante o século XIX, onde apenas os cidadãos que pagavam uma certa quantidade de impostos, ou seja, os mais ricos, tinham o direito de votar. Esse sistema era baseado na ideia de que apenas aqueles que tinham uma certa riqueza poderiam ter a capacidade de tomar decisões políticas. No entanto, esse tipo de voto é considerado discriminatório e injusto, pois exclui a grande maioria da população do processo de tomada de decisões políticas. Atualmente, a maioria dos países adota o sistema de voto universal, onde todos os cidadãos têm o direito de votar, independentemente de sua riqueza ou status social.

Tivemos exemplos de voto censitário no Brasil. A Constituição de 1824 proibia o voto para pessoas que não tivessem renda líquida anual de cem mil réis, ao passo que as Constituições de 1891 e de 1934 proibiam que os mendigos pudessem votar.

 

O Estado tem o dever de adotar medidas que concretizem os direitos previstos na ordem constitucional, de modo que a falha em assegurar o exercício do direito ao voto é violadora da Constituição. 

Numa democracia, as eleições devem contar com a participação do maior número de eleitores e transcorrer de forma íntegra, proba e republicana.

O fornecimento gratuito de transporte no dia das eleições promove dois valores relevantes:

1) a igualdade de participação, proporcionando acesso ao voto por parte significativa dos eleitores; e

2) o combate a ilegalidades, evitando que o transporte sirva como instrumento de interferência no resultado eleitoral.

 

Apelo ao legislador

O STF decidiu, contudo, que não deveria determinar imediatamente o fornecimento gratuito. Como não existe lei, a providência mais adequada seria fazer um apelo ao Congresso Nacional para que edite uma lei regulamentando a matéria. Isso porque a arena preferencial para instituição da providência requerida na ação é o Parlamento, onde as decisões políticas fundamentais devem ser tomadas em uma democracia.

Nesse cenário, justifica-se a solução que reconheça a preferência do Congresso Nacional e, ao mesmo tempo, garanta o cumprimento da Constituição. Inclusive, já existem diversos projetos de lei em tramitação que equacionam adequadamente o problema.

 

Veja a tese fixada pelo STF:

É inconstitucional a omissão do poder público em ofertar, nas zonas urbanas em dias de eleições, transporte público coletivo de forma gratuita e em frequência compatível com aquela praticada em dias úteis.

STF. Plenário. ADPF 1013/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 18/10/2023 (Info 1113).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, julgou parcialmente procedente a ação para:

(i) confirmar, no mérito, a medida cautelar concedida;

(ii) fazer apelo ao Congresso Nacional para que edite lei regulamentadora da política de gratuidade de transporte público nas zonas urbanas em dias de eleições, com frequência compatível com aquela praticada em dias úteis; e,

(iii) caso não editada a lei referida no item anterior, determinar ao Poder Público que, a partir das eleições municipais de 2024, oferte, nas zonas urbanas em dias de eleições, transporte coletivo municipal e intermunicipal, inclusive o metropolitano.


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