sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O pagamento das diferenças entre os valores de avaliação inicial e final do bem desapropriado deve ser feito mediante depósito judicial direto ao proprietário se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Município, por meio de um Decreto, declarou o imóvel de João como sendo de utilidade pública, para fins de desapropriação.

O imóvel foi avaliado em R$ 1 milhão.

O Município procurou João para fazer um acordo, contudo, o particular não aceitou porque exigiu uma indenização maior.

Diante disso, o Município ajuizou ação de desapropriação por utilidade pública contra João.

Na ação, o autor pediu, liminarmente, a imissão provisória na posse. Para tanto, fez o depósito em juízo, na forma do art. 15 do Decreto 3.365/41:

Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil (obs: atual art. 874 do CPC/2015), o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens.

 

Após a instrução processual, em que foi realizada perícia do imóvel, o pedido de desapropriação foi julgado procedente em primeira instância, com a fixação, todavia, da indenização devida pelo Município em R$ 1.700.000,00 (um milhão e setecentos mil reais), a serem acrescidos de correção monetária, juros de mora e juros compensatórios.

Na sentença, o juiz determinou que a diferença entre o valor depositado e o valor fixado (R$ 700 mil) fosse pago pelo Município mediante precatório (art. 100 da CF/88).

João recorreu alegando que o Município possui precatórios pendentes de pagamento desde 2003.

Diante desse cenário, ele argumentou que, se o pagamento for mediante precatório, a indenização não será prévia já que ele demorará muitos anos para receber. Assim, João afirmou que o pagamento deveria ser mediante depósito judicial direto a fim de se garantir a natureza prévia da indenização (art. 5º, XXIV, CF/88).

 

O STF concordou com os argumentos do autor?

SIM.

Na hipótese em que o ente federativo expropriante estiver em mora com a quitação de seus precatórios (art. 100, CF/88), o pagamento da diferença entre o valor das avaliações final e inicial do imóvel desapropriado pelo Poder Público deve ser feito por meio de depósito judicial direto ao então proprietário, em respeito à natureza prévia da indenização (art. 5º, XXIV, CF/88).

STF. Plenário. RE 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/10/2023 (Repercussão Geral – Tema 865) (Info 1113).

 

Efeitos práticos da desapropriação

A lógica que tem prevalecido em matéria de desapropriação é a da distinção rígida entre posse e propriedade.

Nessa linha, a imissão provisória somente privaria o titular do bem de sua posse, mas a perda da propriedade apenas se daria ao final do processo.

Com esse fundamento se tem considerado como indenização prévia aquela paga ao final da ação de desapropriação.

Com base na jurisprudência atual, o Poder Público obtém a imissão na posse com base em avaliação administrativa unilateral, não submetida a qualquer controle por parte do Poder Judiciário e do expropriado. E paga a maior parte do valor da indenização por precatório judicial, possivelmente décadas depois da perda da posse pelo particular.

Porém, o modelo vigente é potencialmente injusto com o particular, pois, em suma:

(i) o proprietário perde a posse do seu bem no início do processo, mediante depósito muitas vezes dissociado do correto valor de mercado;

(ii) a ação de desapropriação tem longa tramitação, visto que impõe a realização de perícia judicial e quase sempre envolve inúmeros recursos e incidentes processuais; e

(iii) após o trânsito em julgado, o pagamento do quantum indenizatório se dá por precatório judicial, cujo prazo de quitação é usualmente descumprido pelos entes públicos.

 

Vale ressaltar que a sistemática atual também é ruim para o Estado. A desapropriação é declarada e implementada em certa época, sob a vigência de determinado governo, mas é paga muitos anos – por vezes, décadas – depois. Em termos práticos, isso significa que os governantes atuais podem desapropriar os bens que desejarem, pagando valor ínfimo. No momento do pagamento definitivo, em geral, o governante é outro.

Além disso, o atual modelo de desapropriação gera, ainda, outra consequência nefasta: o pagamento pelo Estado, ao final dos processos, de indenizações bastante superiores ao valor de mercado do bem expropriado, em decorrência dos juros compensatórios.

Assim, vê-se que o modelo atual de desapropriação não é bom para o expropriado, que certamente preferiria receber apenas o preço justo de seu bem no momento de imissão provisória na posse e acabar por receber o maior montante por precatório, muito tempo depois da perda da posse. Não é bom para o Estado, que tem que pagar muito mais pelo imóvel do que ele verdadeiramente vale. E nem atende adequadamente a sociedade, gerando disfunções quanto ao controle social das desapropriações e dos gastos públicos.

 

Pagamento das indenizações por desapropriação

Como visto acima, a aplicabilidade do regime de precatórios às indenizações por desapropriação por utilidade pública foi assentada a partir da premissa de que a desapropriação se concretizaria apenas com o ato formal de outorga do título de propriedade ao Estado.

Assim, a diferença apurada entre o valor de depósito inicial e o valor efetivo da indenização final, determinada pelo juízo competente, deve ser paga por precatório.

A submissão da desapropriação ao regime de precatórios não viola o comando constitucional de indenização prévia e justa, pois se revela medida razoável para organizar as finanças públicas do ente público.

Contudo, a realidade da maioria dos entes expropriantes é caracterizada pelo constante atraso no pagamento das referidas dívidas, circunstância que deslegitima o Poder Público, desnatura a natureza prévia da indenização e esvazia o conteúdo do direito de propriedade.

Nesse contexto, a medida excepcional, na qual a complementação é paga mediante depósito judicial, objetiva não prejudicar injustamente o antigo proprietário do imóvel pela demora exagerada no recebimento do montante que lhe é devido, em especial porque, além da longa tramitação usual das ações de desapropriação, ele perdeu a posse do bem ainda no início do processo, mediante depósito dissociado do correto valor de mercado.

 

Veja a tese fixada pelo STF:

No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios.

STF. Plenário. RE 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/10/2023 (Repercussão Geral – Tema 865) (Info 1113).

 

Modulação dos efeitos

 A fim de resguardar as legítimas expectativas daqueles que confiaram nos parâmetros anteriormente estabelecidos pelas decisões do Supremo Tribunal Federal, bem como considerando que a virada jurisprudencial equivale à criação de direito novo e, por tal razão, não pode operar efeitos retroativos, como decorrência direta da aplicação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé, o STF modulou os efeitos da decisão para que a tese fixada seja aplicada somente às desapropriações propostas a partir da publicação da ata da sessão desde julgamento, ressalvadas as ações judiciais em curso em que se discuta expressamente a constitucionalidade do pagamento da complementação da indenização por meio de precatório judicial.

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 865 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário e limitou a eficácia temporal da decisão para que as teses ora fixadas sejam aplicadas somente às desapropriações propostas a partir da publicação da ata deste julgamento, ressalvadas as ações judiciais em curso em que se discuta expressamente a constitucionalidade do pagamento da complementação da indenização por meio de precatório judicial.


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