quarta-feira, 22 de outubro de 2025
O boletim de ocorrência, mesmo sendo eletrônico, pode ser considerado como representação válida para deflagrar a persecução penal em crimes de ação pública condicionada (como é o caso do estelionato)
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina contratou João para
reformar sua casa. Eles combinaram que João faria a obra completa por R$
20.000,00.
João pediu um adiantamento de R$
12.000,00 para comprar materiais e começar os trabalhos.
Regina fez o pagamento, mas João
nunca apareceu para iniciar a reforma e parou de atender as ligações.
Em 22 de fevereiro de 2024,
Regina teve certeza de que havia sido vítima de um golpe porque descobriu que
uma outra pessoa do bairro havia sido enganada por João e que os dados da
empresa apresentados eram falsos.
No mesmo dia, Regina registrou um
boletim de ocorrência eletrônico relatando detalhadamente toda a situação: como
conheceu João, o valor pago, as promessas feitas, o desaparecimento do golpista
e o prejuízo de R$ 12.000,00.
Em 17 de setembro de 2024, Regina
compareceu pessoalmente à delegacia para complementar as informações,
apresentando documentos como comprovantes de transferência bancária, prints de
conversas pelo WhatsApp e o contrato assinado. Nessa ocasião, foi colhido um
termo no qual ela manifestou expressamente que desejava representar
criminalmente contra João.
O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pelo
crime de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal:
Estelionato
Art. 171. Obter, para si ou para
outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em
erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco
anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
A denúncia foi recebida pelo
juiz.
A defesa de João impetrou habeas
corpus pedindo o trancamento do inquérito por conta da decadência do direito de
representação.
O advogado argumentou o seguinte:
- o estelionato, em regra, é crime de ação penal pública
condicionada à representação da vítima:
Qual é a ação
penal no caso de estelionato?
Regra geral:
ação pública CONDICIONADA à representação.
Exceções:
Será de ação
penal incondicionada quando a vítima for:
a) a
Administração Pública, direta ou indireta;
b) criança ou
adolescente;
c) pessoa com
deficiência; ou
d) maior de 70
(setenta) anos de idade ou incapaz.
Art. 171 (...)
§ 5º Somente se procede mediante
representação, salvo se a vítima for:
I - a Administração Pública,
direta ou indireta;
II - criança ou adolescente;
III - pessoa com deficiência; ou
IV - maior de 70 (setenta) anos
de idade ou incapaz.
- o prazo para oferecer representação é de 6 meses, nos
termos do art. 38 do CPP:
Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou
seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se
não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber
quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o
prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a
decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos
casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.
- o prazo de 6 meses, na melhor
das hipóteses, começou a ser contado em 22/02/2024, quando Regina disse que
teve certeza que soube que teria sido vítima de estelionato;
- ocorre que ela somente ofereceu
representação no dia 17/09/2024, ou seja, mais de 6 meses depois;
- o mero registro do boletim de
ocorrência eletrônico em fevereiro não pode ser considerado como uma
representação válida, pois não houve manifestação clara, direta e inequívoca da
vontade de instaurar a persecução penal.
A questão chegou até o STJ.
A tese da defesa foi acolhida?
NÃO.
A representação constitui
declaração de vontade do ofendido ou de seu representante legal, expressando o
desejo de ver iniciada a persecução penal contra o autor do delito.
O instrumento da representação
deve ser analisado sob a ótica de sua finalidade e não de sua forma.
O sistema processual penal
brasileiro, em consonância com o princípio da instrumentalidade das formas, não
exige rigorismos formais para a representação criminal.
O boletim de ocorrência foi
registrado dentro do prazo legal de seis meses e continha o relato
pormenorizado dos fatos, demonstrando de forma clara o interesse da vítima na
apuração dos fatos e responsabilização do autor.
A simples leitura do boletim
revela intenção inequívoca da vítima em dar início à persecução penal, tanto
que os fatos foram narrados com precisão, indicando autoria, prejuízo e
circunstâncias que, em tese, configuram estelionato, inclusive com indicação da
qualificação do autor e o valor do dano suportado.
A posterior complementação dos
dados e documentos não invalida a representação já concretizada anteriormente,
mas apenas reforça a intenção inicial da ofendida.
Dessa forma, a exigência de
manifestação expressa e inequívoca não pode ser confundida com formalismo
excessivo, e a posterior complementação dos dados não invalida a representação
já concretizada anteriormente.
Tese de julgamento:
1. A representação em crimes de ação pública
condicionada prescinde de formalidades específicas, bastando a inequívoca
demonstração da vontade da vítima.
2. O boletim de ocorrência registrado dentro do prazo
decadencial pode configurar a representação exigida para a deflagração da
persecução penal.
STJ. 6ª
Turma. AgRg no HC 1.005.298-SP, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo
(Desembargador convocado do TJSP), julgado em 3/9/2025 (Info 862).
Em sentido parecido:
A representação para o crime de estelionato não exige
formalidade específica, bastando a demonstração inequívoca da vontade da
vítima.
O comparecimento espontâneo da vítima à delegacia e o registro
de ocorrência policial são suficientes para caracterizar a representação
exigida pelo § 5º do art. 171 do Código Penal.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.907.967-RS, Rel. Min. Otávio de
Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), julgado em 17/6/2025 (Info 27
- Edição Extraordinária).

