quarta-feira, 1 de outubro de 2025
O dolo eventual é compatível com o reconhecimento de desígnios autônomos, justificando a aplicação do concurso formal impróprio
Imagine a seguinte situação
hipotética:
No
acidente, morreram os dois ocupantes do outro veículo: Regina (que estava no
banco do passageiro) e João (que dirigia o automóvel).
Carlos
foi denunciado e pronunciado por dois homicídios dolosos, praticados com dolo
eventual.
Durante
a sessão do Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença foi questionado sobre a
modalidade do dolo.
Os
jurados responderam que Carlos agiu com dolo eventual em relação à morte de
ambas as vítimas - ou seja, reconheceram que ele previu como possível o
resultado morte e assumiu o risco de produzi-lo.
Na
dosimetria da pena, deve ser aplicada a regra do concurso formal próprio ou
impróprio?
O
Ministério Público pediu o reconhecimento do concurso formal IMPRÓPRIO,
argumentando que Carlos assumiu o risco em relação a cada vítima de forma
autônoma, o que justificaria uma punição mais severa (soma das penas de cada
crime).
A
defesa, por sua vez, sustentou que seria caso de concurso formal PRÓPRIO,
aplicando a regra mais benéfica ao réu (aumento de apenas metade da pena base).
O fundamento foi que Carlos não tinha “desígnios autônomos”, ou seja, não teria
havido intenção separada para cada morte, mas sim uma única conduta imprudente
que resultou em dois óbitos.
Para
relembrar:
Ocorre o concurso
formal quando o agente, mediante uma única conduta, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não. O concurso formal está previsto no art. 70 do CP:
Concurso
formal
Art.
70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão
é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.
Parágrafo
único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69
deste Código.
Requisitos:
•
Uma única conduta (uma única ação ou omissão);
•
Pluralidade de crimes (dois ou mais crimes praticados).
CONCURSO FORMAL |
|
PERFEITO (normal, próprio) |
IMPERFEITO (anormal, impróprio) |
O agente produziu dois ou mais
resultados criminosos, mas não tinha o desígnio de praticá-los de forma
autônoma. |
Quando o agente, com uma única conduta,
pratica dois ou mais crimes dolosos, tendo o desígnio de praticar cada um
deles (desígnios autônomos). |
Ex1: João atira para
matar Maria, acertando-a. Ocorre que, por culpa, atinge também Pedro,
causando-lhe lesões corporais. João não tinha o desígnio de ferir Pedro. Ex2: motorista causa acidente e mata 3
pessoas. Não havia o desígnio autônomo de praticar os diversos homicídios. |
Ex1: Jack quer matar
Bill e Paul, seus inimigos. Para tanto, Jack instala uma bomba no carro
utilizado pelos dois, causando a morte de ambos. Jack matou dois coelhos com
uma cajadada só. Ex2: Rambo vê seu inimigo andando de
mãos dadas com a namorada. Rambo pega seu fuzil e resolve atirar em seu
inimigo. Alguém alerta Rambo: “não
atire agora, você poderá acertar também a namorada”, mas Rambo responde:
“eu só quero matá-lo, mas se pegar nela
também tanto faz. Não estou nem aí”. Rambo, então, desfere um único tiro
que perfura o corpo do inimigo e acerta também a namorada. Ambos morrem. |
Pode ocorrer em duas situações: • DOLO + CULPA: quando o agente tinha
dolo de praticar um crime e os demais delitos foram praticados por culpa
(exemplo 1); • CULPA + CULPA:
quando o agente não tinha a intenção de praticar nenhum dos delitos, tendo
todos eles ocorrido por culpa (exemplo 2). |
Ocorre, portanto, quando o sujeito age
com dolo em relação a todos os crimes produzidos. Aqui é DOLO + DOLO. Pode ser: • Dolo direto + dolo direto (exemplo
1); • Dolo direto + dolo eventual (exemplo
2). • Dolo eventual +
dolo eventual. |
Fixação da pena: Regra geral: exasperação da
pena: • Aplica-se a maior das penas,
aumentada de 1/6 até 1/2. • Para aumentar mais ou menos, o juiz
leva em consideração a quantidade de crimes. Exceção: concurso material
benéfico O montante da pena para o concurso
formal não pode ser maior do que a que seria aplicada se fosse feito o
concurso material de crimes (ou seja, se fossem somados todos os crimes). É o caso do exemplo 1, que demos acima,
sobre João. A pena mínima para o homicídio simples de Maria é 6 anos. A pena
mínima para a lesão corporal culposa de Pedro é 2 meses. Se fôssemos aplicar a pena do homicídio
aumentada de 1/6, totalizaria 7 anos. Se fôssemos somar as penas do homicídio com a lesão
corporal, daria 6 anos e 2 meses. Logo, nesse caso, é mais benéfico para
o réu aplicar a regra do concurso material (que é a soma das penas). É o que
a lei determina que se faça (art. 70, parágrafo único, do CP) porque o
concurso formal foi idealizado para ajudar o réu. |
Fixação da pena No caso de concurso formal imperfeito,
as penas dos diversos crimes são sempre SOMADAS. Isso porque o sujeito agiu
com desígnios autônomos. |
O
que decidiu o STJ: é caso de concurso formal próprio ou impróprio?
Impróprio.
O
Conselho de Sentença reconheceu, de forma expressa, a prática de dois
homicídios dolosos, ao responder afirmativamente aos quesitos relativos à
existência de dolo eventual em relação a cada uma das vítimas fatais.
Tal conclusão
revela que o agente, ao praticar a conduta, previu como possíveis os resultados
de morte e, ainda assim, assumiu o risco de produzi-los, nos termos do art. 18,
inciso I, segunda parte, do Código Penal:
Art.
18 - Diz-se o crime:
Crime
doloso
I
- doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
(...)
Dessa
forma, sendo ambos os homicídios praticados com dolo, ainda que eventual,
conclui-se que estavam presentes desígnios autônomos em relação a cada uma das
condutas delituosas.
Em
palavras mais simples, poderíamos dizer que, se Carlos previu que poderia matar
pessoas ao dirigir embriagado em alta velocidade e mesmo assim assumiu esse
risco (dolo eventual), isso significa que ele tinha um desígnio separado em
relação a cada possível vítima. Ele não simplesmente causou mortes acidentais.
Ele conscientemente assumiu o risco de matar quantas pessoas estivessem no
caminho.
Assim,
fica afastada a possibilidade de aplicação da regra do concurso formal próprio
(art. 70, caput, parte final, do CP), uma vez que tal modalidade pressupõe a
ausência de vontade autônoma para cada resultado.
A
jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, quando o agente, ainda que
mediante uma única conduta, anui com a produção de múltiplos resultados,
revela-se caracterizada a existência de desígnios autônomos, o que impõe o
reconhecimento do concurso formal impróprio:
O concurso formal
próprio ou perfeito somente é possível se os crimes forem todos culposos, ou se
um for doloso e o outro culposo.
Assim, se o agente
pretende alcançar mais de um resultado ou anui com tal possibilidade,
configura-se o concurso formal impróprio ou imperfeito, pois caracterizados os
desígnios autônomos.
Os desígnios autônomos
que caracterizam o concurso formal impróprio referem-se a qualquer forma de
dolo, direto ou eventual.
STJ. 5ª Turma. AgRg no
AREsp 2.521.343-SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/9/2024
(Info 827).
A
partir do momento em que os jurados reconhecem o dolo eventual em relação a
ambas as vítimas, deve-se obrigatoriamente reconhecer que havia desígnios
autônomos.
Assim,
a aplicação do concurso formal impróprio revela-se não apenas adequada, mas
necessária à correta individualização da pena, em consonância com o que restou
soberanamente decidido pelo Tribunal do Júri.
Teses
de julgamento:
1. O dolo eventual é
compatível com o reconhecimento de desígnios autônomos, justificando a
aplicação do concurso formal impróprio.
2. A decisão do
Tribunal do Júri que reconhece dolo eventual vincula as instâncias superiores
quanto à configuração de desígnios autônomos.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no REsp 2.052.416-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
20/8/2025 (Info 860).
