Dizer o Direito

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Mulheres presas têm direito à remição de pena pelo período dedicado aos cuidados de seus filhos na unidade prisional

Imagine a seguinte situação hipotética:

Larissa é uma mulher de 25 anos que foi condenada a 5 anos de prisão em regime fechado por tráfico de drogas. Durante o cumprimento da pena, ela engravidou e deu à luz a um menino chamado Gabriel.

Conforme previsto na Lei de Execução Penal, Larissa foi transferida para a ala de amamentação do presídio feminino, onde permaneceu cuidando integralmente de Gabriel por 6 meses.

Durante esse período, ela se dedicava 24 horas por dia aos cuidados do bebê: amamentação, troca de fraldas, banho, acalento quando chorava durante a madrugada, estimulação do desenvolvimento infantil e todos os demais cuidados necessários a um recém-nascido.

Devido à necessidade de cuidar do filho, Larissa não pôde participar das atividades de trabalho ou estudo oferecidas pelo estabelecimento prisional durante esses 6 meses.

Após o período de amamentação, quando Gabriel foi entregue aos cuidados de familiares, Larissa solicitou ao juízo da execução que reconhecesse o período de cuidados maternos como trabalho para fins de remição de pena, baseando-se na “teoria da economia do cuidado”, que reconhece o valor econômico e social das atividades de cuidado tradicionalmente não remuneradas.

 

Abrindo um parêntese: o que é a teoria da economia do cuidado?

Este conceito foi inicialmente formulado pela cientista política Joan Tronto em 1993, definindo-o como “todo tipo de trabalho, remunerado ou não, motivado pelo objetivo de melhorar a vida de outra pessoa”.

A teoria da economia do cuidado defende que atividades como amamentar, cuidar de crianças, idosos ou doente, geralmente realizadas dentro de casa e sem remuneração, devem ser reconhecidas como trabalho. Essas tarefas, embora não sejam formalmente inseridas no mercado ou no cálculo do PIB, exigem tempo, esforço físico e emocional, sendo fundamentais para o funcionamento da sociedade.

Tradicionalmente, esse cuidado é exercido por mulheres, o que contribui para a desigualdade de gênero, já que elas ficam sobrecarregadas com tarefas invisibilizadas e têm menos oportunidades de educação, emprego e renda.

Essa teoria busca chamar atenção para o valor econômico e social do cuidado, propondo que ele seja dividido de forma mais justa entre homens, mulheres, Estado e instituições, além de ser reconhecido em políticas públicas, como previdência, salário-maternidade ou, como no caso analisado pelo STJ, remição de pena.

Ao reconhecer os cuidados maternos no cárcere como forma de trabalho, a Justiça aplica a economia do cuidado para garantir igualdade de condições às mulheres presas, muitas vezes impedidas de trabalhar ou estudar por estarem dedicadas exclusivamente aos filhos.

 

Voltando ao caso concreto:

O juiz negou o pedido, argumentando que os cuidados maternos constituem dever constitucional e legal da mãe, não podendo ser equiparados ao trabalho voluntário previsto no art. 126 da LEP.

O Tribunal de Justiça manteve a decisão, entendendo que não há previsão legal para considerar os cuidados maternos como trabalho ensejador de remição.

A Defensoria Pública impetrou habeas corpus no STJ, alegando que a interpretação restritiva do conceito de “trabalho” gera desigualdade de gênero no acesso à remição, já que mulheres encarceradas com filhos ficam impedidas de trabalhar ou estudar durante o período de amamentação, sendo prejudicadas em relação aos demais apenados.

 

A Terceira Seção do STJ acolheu os argumentos da Defensoria Pública? A amamentação e os cuidados maternos podem ser reconhecidos como formas de trabalho para remição de pena?

SIM.

Equiparar a amamentação e os cuidados maternos ao trabalho é medida não apenas justa, mas também juridicamente admissível, à luz da interpretação sistemática das normas que disciplinam a licença-maternidade e dos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.

A Constituição Federal expressamente conferiu ao período pós-parto natureza de afastamento laboral protegido, ao assegurar, no art. 7º, XVIII, da CF/88, o direito à estabilidade no emprego e à percepção de salário durante 120 dias após o parto. Essa proteção ultrapassa o campo trabalhista, alcançando o previdenciário, uma vez que o período é computado como tempo de contribuição para fins de aposentadoria (art. 19-C, II, do Decreto n. 3.048/1999 e art. 24, § 5º, da Instrução Normativa n. 77/2015, do INSS).

Esse tratamento não se restringe às seguradas em liberdade. Há base constitucional sólida para tutelar o período puerperal e os cuidados com o recém-nascido, reconhecendo sua singularidade e relevância para o desenvolvimento da criança.

No plano internacional, o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/1990) comprometeu o Brasil a adotar medidas que assegurem a nutrição adequada da criança, incluindo o aleitamento materno. Já o artigo 11.2 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377/2002) elevou a licença-maternidade a mecanismo essencial de combate à discriminação de gênero e de garantia ao direito ao trabalho.

A jurisprudência tem flexibilizado a aplicação do art. 126 da LEP, admitindo a remição da pena por atividades não expressamente previstas em lei, como leitura, estudo autônomo e artesanato. Nesse sentido, o STJ reconheceu que não é razoável afastar a remição por atividades laborais devidamente certificadas pelo estabelecimento prisional: STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 922.428/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 9/9/2024.

Nos termos do art. 32 da LEP, o trabalho deve ser atribuído levando em conta as condições pessoais do preso. No caso das mães encarceradas, isso exige considerar as responsabilidades relacionadas ao cuidado de filhos, especialmente quando permanecem com elas no cárcere. A Resolução CNJ nº 369/2021 reforça a necessidade de políticas específicas para maternidade no sistema prisional.

O STF já reconheceu que mulheres presas com seus filhos exercem a chamada “hipermaternidade”, permanecendo integralmente dedicadas aos cuidados maternos, sem acesso a atividades escolares ou laborais, o que pode dificultar o trabalho ou estudo.

Daí a necessidade de interpretação extensiva do art. 126 da LEP, para incluir a amamentação e os cuidados maternos como formas de trabalho. Essas atividades exigem esforço, dedicação contínua e são indispensáveis ao desenvolvimento saudável da criança.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, editado pelo CNJ, orienta a magistratura a considerar as desigualdades de gênero, combatendo estereótipos que influenciam decisões judiciais. Nesse contexto, é imprescindível reconhecer que as mulheres assumem, de forma desproporcional, tarefas domésticas e maternas, o que reforça sua posição de vulnerabilidade.

No julgamento do HC 143.641/SP, o STF fixou parâmetros claros ao afastar fundamentos discriminatórios que inviabilizavam a concessão da prisão domiciliar a mulheres gestantes ou mães, como a exigência de prova de dependência da criança ou a ausência de trabalho formal.

Por fim, o art. 83, § 2º, da LEP prevê que estabelecimentos penais destinados a mulheres devem contar com berçário, a fim de possibilitar o cuidado e a amamentação dos filhos até os seis meses de idade, reforçando a ideia de que o cuidado materno é atividade reconhecida pelo próprio ordenamento jurídico.

 

Teses de julgamento:

1. A interpretação extensiva do termo “trabalho” no art. 126 da LEP inclui os cuidados maternos como atividade para fins de remição de pena.

2. A amamentação e os cuidados maternos são reconhecidos como formas de trabalho para remição de pena, considerando sua importância para o desenvolvimento da criança.

3. As desigualdades de gênero devem ser consideradas nas decisões judiciais, eliminando estereótipos que influenciam negativamente as decisões.

STJ. 3ª Seção. HC 920.980-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/8/2025 (Info 859).


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