quarta-feira, 24 de setembro de 2025
A continuidade prolongada do pagamento voluntário de pensão alimentícia pode gerar legítima expectativa de manutenção da obrigação por prazo indeterminado, em razão da supressio e da surrectio
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João e Regina foram casados por
muitos anos.
Durante o casamento, Regina se
dedicou exclusivamente à família, cuidando dos filhos e acompanhando João em
suas mudanças profissionais, inclusive deixando seu próprio emprego quando a
família se mudou para Petrópolis (RJ).
Em 1993, eles decidiram se
divorciar. No processo de divórcio, fizeram um acordo homologado pelo juiz
segundo o qual João pagaria pensão alimentícia à Regina pelo período de 1 ano,
correspondente a 5% de sua renda líquida, além de arcar com seu plano de saúde.
Dois anos depois, em 1995, percebendo
que Regina ainda não havia conseguido se recolocar no mercado de trabalho e
enfrentava dificuldades financeiras, ambos apresentaram um novo acordo nos
autos do processo de divórcio, pedindo que a pensão fosse mantida por tempo
indeterminado.
O juiz, contudo, não homologou
essa alteração por questões processuais. O magistrado afirmou que seria
necessário ajuizar uma ação específica para modificar as cláusulas do acordo
original.
Apesar de não ter havido
homologação judicial do novo acordo, João continuou pagando voluntariamente a
pensão alimentícia para Regina todos os meses. Esse pagamento se estendeu por
mais de 25 anos consecutivos.
Durante todo esse tempo, Regina,
que passou a enfrentar problemas de saúde sérios (Lúpus), permaneceu
financeiramente dependente da pensão. Já idosa, sem condições de trabalhar, ela
tinha nessa pensão seu único meio de subsistência.
Em 2018, João, com 72 anos e
enfrentando problemas de saúde (câncer de próstata), decidiu ajuizar uma ação
de exoneração de alimentos contra Regina. Alegou que suas condições financeiras
haviam se deteriorado devido aos custos do tratamento médico e que vivia há 16
anos em união estável com outra mulher, tendo assumido novas responsabilidades
familiares.
Regina, por sua vez, também idosa
e com lúpus (doença grave e incapacitante), argumentou que dependia
integralmente da pensão para sua sobrevivência. Recebia apenas uma modesta
aposentadoria do INSS e estava impossibilitada de trabalhar devido à idade
avançada e ao estado de saúde debilitado.
O juiz julgou procedente o pedido
de João, determinando a extinção da obrigação alimentar. Considerou que os
pagamentos realizados após o prazo original de 1 ano constituíam mera
liberalidade, não gerando qualquer obrigação legal permanente.
O Tribunal de Justiça manteve a
sentença, entendendo que não se aplicavam ao caso os institutos da supressio
e surrectio uma vez que os alimentos transitórios não poderiam ser
perpetuados por simples liberalidade do ex-cônjuge.
Regina recorreu ao STJ, alegando
que o longo período de pagamentos voluntários (mais de duas décadas) havia
criado uma expectativa legítima de continuidade, protegida pelo princípio da
boa-fé objetiva, e que sua condição de pessoa idosa e doente impedia qualquer
possibilidade de autossustento.
O STJ acolheu o recurso de Regina
determinando que João continue pagando a pensão alimentícia por prazo
indeterminado?
SIM.
Aplicação da boa-fé
objetiva nas relações familiares
De acordo com o art. 187 do CC:
Art. 187. Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
A boa-fé objetiva impõe que os
sujeitos de uma relação jurídica adotem comportamentos pautados por ética,
lealdade e confiança.
A boa-fé não serve apenas para
reger contratos comerciais, mas também se aplica às relações de família,
criando um dever de comportamento ético, leal e coerente entre as partes.
A tutela da confiança veda
comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium) e reconhece que a
inércia prolongada (supressio) ou a prática constante (surrectio) de uma
conduta gera expectativas jurídicas que devem ser respeitadas.
Quando alguém age de determinada
forma por muito tempo, cria nos outros uma expectativa legítima de que
continuará agindo da mesma maneira. Romper essa expectativa de forma abrupta,
sem justificativa adequada, viola o princípio da boa-fé.
Aplicação dos institutos da
supressio e surrectio
A supressio ocorre quando alguém
perde um direito por não exercê-lo durante muito tempo, criando nos outros a
expectativa de que esse direito não será mais usado.
Já a surrectio é o surgimento de
uma vantagem para a outra parte justamente porque o titular do direito ficou
muito tempo sem exercê-lo.
Assim, a inércia prolongada do
credor de alimentos em promover a execução da pensão em débito pode gerar, no
devedor, a legítima expectativa de que a prestação não é mais necessária,
conduzindo à estabilização da situação de inadimplemento. Em sentido inverso, o
alimentante que, mesmo exonerado, opta voluntariamente por continuar realizando
os pagamentos, conduz ao alimentando a expectativa de continuidade da
prestação, a qual pode tornar-se juridicamente relevante, especialmente diante
da reiterada e sistemática manifestação de vontade.
No caso, João tinha o direito de
parar de pagar os alimentos após um ano (conforme o acordo original), mas
escolheu não exercer esse direito por mais de 25 anos consecutivos. Essa
inércia prolongada criou em Regina a expectativa legítima de que ele não iria
mais reivindicar a exoneração dos alimentos.
As circunstâncias
específicas do relacionamento do casal devem ser levadas em consideração
Regina havia abandonado sua
carreira profissional durante o casamento para acompanhar João em uma mudança
motivada pelo trabalho dele. Essa decisão, tomada em confiança no
relacionamento e no apoio do marido, a deixou em situação de vulnerabilidade
econômica após o divórcio. Essa “confiança investida” durante o casamento deve
ser protegida juridicamente.
Análise a partir de uma
perspectiva de gênero
O STJ também aplicou uma
perspectiva de gênero ao caso, reconhecendo que a divisão sexual do trabalho
durante o casamento (homem provedor, mulher cuidadora) havia colocado Regina em
situação de dependência econômica. Essa análise considerou que ela havia
“investido sua confiança” no relacionamento ao abrir mão de sua carreira, e que
essa confiança merecia proteção jurídica.
Necessidade de Regina e
possibilidade de João
Outro argumento importante foi a
análise da condição pessoal de Regina no momento da ação. Ela era uma pessoa
idosa, com mais de 70 anos, portadora de lúpus eritematoso sistêmico (doença
grave e incapacitante), e recebia apenas uma pequena aposentadoria do INSS.
Essas características a enquadravam nas situações excepcionais que a
jurisprudência do STJ reconhece como justificadoras da manutenção dos alimentos
por prazo indeterminado: idade avançada, problemas de saúde e impossibilidade
prática de reinserção no mercado de trabalho.
O STJ também analisou a
capacidade financeira de Roberto. Embora ele alegasse dificuldades devido ao
tratamento de câncer, a documentação dos autos (incluindo declarações de
imposto de renda obtidas após quebra de sigilo fiscal) demonstrava que seu
patrimônio havia aumentado ao longo dos anos e que apresentava boa capacidade
financeira. Isso indicava que ele mantinha condições de continuar pagando a
pensão, que correspondia a apenas 5% de sua renda líquida.
O STJ rejeitou o argumento
de que os pagamentos constituíam “mera liberalidade”
Quando alguém continua pagando
alimentos voluntariamente por décadas, isso não pode ser considerado um simples
favor ou generosidade. Ao contrário, esse comportamento sistemático e
prolongado gera consequências jurídicas, criando uma expectativa protegida pela
boa-fé objetiva.
Transitoriedade dos
alimentos entre ex-cônjuges
O casamento estabelece comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges.
Tal união gera o dever de mútua assistência, independentemente do regime de
bens.
O término do casamento pode
causar desequilíbrios financeiros. Em atenção ao princípio da solidariedade,
admite-se a fixação de pensão alimentícia nos termos do art. 1.694 do CC, a fim
de viabilizar o reequilíbrio econômico do cônjuge que dependia do outro.
Considerando-se que os alimentos
entre ex-cônjuges têm natureza reparatória, a regra é que sejam fixados com
termo certo, permitindo ao beneficiário retomar sua autonomia financeira.
O STJ, contudo, admite alimentos
permanentes entre ex-cônjuges em situações excepcionais, como:
I) impossibilidade prática de
reinserção no mercado de trabalho;
II) idade avançada;
III) estado de saúde fragilizado.
Os alimentos fixados para o ex-cônjuge devem ser transitórios?
• Regra geral: SIM. Em regra, a pensão alimentícia devida a
ex-cônjuge deve ser fixada por tempo determinado.
• Exceção: será cabível a pensão por prazo indeterminado somente
quando o alimentado (ex-cônjuge credor) se encontrar em circunstâncias
excepcionais, como de incapacidade laboral permanente, saúde fragilizada ou
impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.496.948-SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro,
julgado em 3/3/2015 (Info 557).
Essas situações excepcionais (idade
avançada, problemas de saúde graves e impossibilidade de retorno ao mercado de
trabalho) estão presentes no caso de Regina.
Resumindo
O STJ concluiu que a combinação
entre o longo período de pagamentos voluntários (criando expectativa legítima),
a situação de vulnerabilidade de Regina (idade e doença) e a capacidade
financeira de João justificava a manutenção da pensão por prazo indeterminado.
Cessar os pagamentos nessas
circunstâncias constituiria violação à boa-fé objetiva e causaria injustiça à
alimentanda, que havia organizado sua vida com base na expectativa criada pelo
comportamento consistente do ex-marido ao longo de mais de duas décadas.
Em suma:
É possível a manutenção do pagamento de pensão
alimentícia por prazo indeterminado, na hipótese em que o ex-marido, mesmo
exonerado, optou voluntariamente por continuar realizando o pagamento de
alimentos por duas décadas, em razão da configuração dos institutos da supressio para
o alimentante, que deixou de exercer seu direito de cessar os
pagamentos, e da surrectio para a alimentanda diante da
expectativa de que o direito de exoneração dos alimentos não mais seria
reivindicado pelo ex-cônjuge.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.172.590-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17/6/2025 (Info
859).
