sexta-feira, 10 de março de 2023

É constitucional o art. 139, IV, do CPC, que prevê medidas atípicas destinadas a assegurar a efetivação dos julgados

 

ENTENDENDO O ART. 139, IV, DO CPC

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi condenado a pagar R$ 100 mil em favor de Pedro.

Como não houve pagamento voluntário, Pedro iniciou o cumprimento de sentença.

Tentou-se a penhora de bens do devedor, mas não se encontrou nada em seu nome.

A despeito disso, João constantemente aparecia nas redes sociais fazendo viagens internacionais.

Diante desse cenário, em 2019, Pedro requereu ao juízo a suspensão do passaporte do executado até que ele pague a dívida. O juiz deferiu o pedido.

 

Isso é possível? Em tese, é possível que o juiz, no cumprimento de sentença ou em um processo autônomo de execução comum, determine a suspensão do passaporte e da CNH do executado?

SIM. Tais providências são classificadas como medidas executivas atípicas (meios executivos atípicos) e são admitidas pela jurisprudência, respeitados alguns requisitos. Nesse sentido, confira o seguinte julgado do STJ:

A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que cumpridos os seguintes requisitos:

• existam indícios de que o devedor possui patrimônio expropriável (bens que podem ser penhorados);

• essas medidas atípicas sejam adotadas de modo subsidiário;

• a decisão judicial que a determinar contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta;

• sejam observados o contraditório substancial e o postulado da proporcionalidade.

STJ. 3ª Turma. REsp 1788950/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23/04/2019.

 

Efetividade do processo, princípio do resultado na execução e atipicidade das medidas executivas

O principal fundamento para isso é o art. 139, IV, do CPC/2015, que representou uma importante novidade do Código e que teve por objetivo dar mais efetividade ao processo. Veja a redação do dispositivo:

Art. 139.  O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

(...)

IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

 

No caso do processo de execução, a adoção de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias apresenta-se como um importante instrumento para permitir a satisfação da obrigação que está sendo cobrada (obrigação exequenda). Com isso, podemos dizer que esse dispositivo homenageia (prestigia) o “princípio do resultado na execução”.

As medidas executivas atípicas, sobretudo as coercitivas, não são penalidades judiciais impostas ao devedor, pois, se assim fossem, implicariam obrigatoriamente em quitação da dívida após o cumprimento da referida pena, o que não ocorre.

Por esse motivo, essas medidas previstas no art. 139, IV, do CPC não representam uma superação do dogma da patrimonialidade da execução, uma vez que são os bens - e apenas os bens - do devedor que respondem pelas suas dívidas. O que o art. 139, IV, do CPC permite é que, mesmo a execução sendo patrimonial, sejam impostas restrições pessoais como método para vencer a recalcitrância do devedor.

 

ADI PROPOSTA CONTRA O ART. 139, IV, DO CPC

O Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou ADI contra o art. 139, IV, do CPC/2015.

Segundo trechos da petição inicial:

“(...) admitir, com fundamento no artigo 139, inciso IV, do CPC, a apreensão de passaporte ou da carteira nacional de habilitação como atos executivos atípicos enseja violação ao direito de liberdade de locomoção (artigo 5º, incisos XV e LIV) e à dignidade da pessoa humana (artigo 1ª, inciso III)”

“A bem da verdade, a suspensão da carteira nacional de habilitação e do passaporte do devedor são medidas absolutamente desarrazoadas e desproporcionais, contrariando, inclusive, o princípio da ponderação, consagrado por Robert Alexy.”

“Limitar o direito de ir e vir do devedor é lançar às favas os ditames da responsabilidade patrimonial do devedor para satisfazer o crédito às custas de sua liberdade; é admitir que a necessidade de satisfação de interesses contratuais, comerciais e/ou empresariais do credor poderia ser atendida restringindo-se a liberdade de locomoção do devedor.”

 

O autor formulou então o seguinte pedido:

“Diante do exposto, requer seja julgado procedente o pedido para que essa Suprema Corte declare a nulidade, sem redução de texto, do inciso IV do artigo 139 da Lei n. 13.105/2015, para declarar inconstitucionais, como possíveis medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias oriundas da aplicação daquele dispositivo, a apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública.”

 

O STF concordou os argumentos do autor? O pedido foi julgado procedente?

NÃO.

A Constituição Federal prevê, com garantia fundamental, a duração razoável do processo, que decorre da própria inafastabilidade da jurisdição:

Art. 5º (...)

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)    

 

A duração razoável do processo também abrange a atividade satisfativa, ou seja, a execução daquilo que foi assegurado no processo. Nesse sentido, confira o art. 4º do CPC/2015:

CPC/2015

Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

 

Assim, é inviável a pretensão abstrata formulada pelo autor de retirar determinadas medidas do leque de ferramentas disponíveis ao magistrado para fazer valer o provimento jurisdicional, sob pena de inviabilizar a efetividade do próprio processo, notadamente quando inexistir uma ampliação excessiva da discricionariedade judicial.

O art. 138, IV, do CPC/2015 traz uma cláusula geral de medidas atípicas, mas isso tem uma razão de ser. A previsão de uma cláusula geral, contendo uma autorização genérica, se dá diante da impossibilidade de a legislação considerar todas as hipóteses possíveis no mundo contemporâneo, caracterizado pelo dinamismo e pelo risco relacionados aos mais diversos ramos jurídicos.

Assim, as medidas atípicas devem ser avaliadas de forma casuística, de modo a garantir ao juiz a interpretação da norma e a melhor adequação ao caso concreto, aplicando ao devedor ou executado aquela que lhe for menos gravosa, mediante decisão devidamente motivada.

Vale ressaltar, contudo, que a discricionariedade judicial não se confunde com arbitrariedade, razão pela qual qualquer abuso deverá ser coibido pelos meios processuais próprios, que são os recursos previstos no ordenamento processual.

 

Em suma:

São constitucionais — desde que respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os valores especificados no próprio ordenamento processual, em especial os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — as medidas atípicas previstas no CPC/2015 destinadas a assegurar a efetivação dos julgados.

STF. Plenário. ADI 5941/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/02/2023 (Info 1082).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou improcedente o pedido e decidiu que é constitucional o art. 139, IV, do CPC/2015.

 

A decisão acima significa que o STF disse que o indivíduo que esteja com dívidas fica impedido de particular de concursos públicos?

NÃO. Na época em que a notícia do julgado foi divulgada, essa confusão surgiu em algumas pessoas. O motivo desse equívoco foi o seguinte:

Na petição inicial da ADI, o partido pediu que o STF dissesse expressamente que seria inconstitucional decretar “a apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública” com base no art. 139, IV, do CPC.

O STF rejeitou esse pedido afirmando que não cabia a ele dizer, de antemão, de forma abstrata, quais medidas estariam proibidas. Segundo a Corte, as medidas atípicas que serão aplicadas devem ser avaliadas pelo juiz no caso concreto, “aplicando ao devedor ou executado aquela que lhe for menos gravosa, mediante decisão devidamente motivada”.

O que o STF não quis foi proibir, de forma prévia, qualquer medida, deixando para o magistrado fundamentar no caso concreto. Essa escolha do juiz, contudo, não é absoluta nem pode ser arbitrária. O STF afirmou que a medida imposta deve necessariamente respeitar:

• os direitos fundamentais da pessoa humana;

• os valores especificados no ordenamento processual;

• os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

 

Diante desses parâmetros fixados pelo STF, em minha opinião, não se mostra, na prática, no caso concreto, possível que o juiz decrete a proibição de um candidato participar de concurso público pelo simples fato de ele estar sendo executado. Essa medida ofenderia o princípio da proporcionalidade, além de ser contrário ao objetivo primordial da execução, que é a satisfação do crédito. Se o devedor for aprovado e nomeado, terá melhores condições de pagar o débito.

Ademais as medidas atípicas do art. 139, IV, do CPC são subsidiárias e não se aplicam pelo simples inadimplemento, sendo necessária a demonstração de que há uma espécie de abuso por parte do devedor.

 

 

 

 

 


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