terça-feira, 14 de novembro de 2023

Súmula 658 do STJ

Apropriação indébita tributária

A Lei nº 8.137/90 define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo. Os arts. 1º e 2º da Lei trazem os crimes praticados por particulares contra a ordem tributária.

O art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 é conhecido pela doutrina e jurisprudência como “apropriação indébita tributária”. Veja:

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

(...)

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:

(...)

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

(...)

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

 

Bem jurídico

O bem jurídico protegido é a ordem tributária, ou seja, o interesse do Estado na arrecadação dos tributos. Alguns autores falam que o bem jurídico é o erário.

 

Apropriação indébita previdenciária x apropriação indébita tributária

O art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 é uma forma especial de apropriação indébita.

É muito semelhante também com o delito de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), sendo a principal diferença a seguinte:

Art. 168-A do CP

Art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90

O agente deixa de repassar contribuições previdenciárias recolhidas dos contribuintes.

O agente deixa de repassar quaisquer outros tributos (que não contribuições previdenciárias) recolhidas dos contribuintes.

 

Sujeito ativo

O sujeito ativo do crime é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90: “deixar de recolher (...) na qualidade de sujeito passivo da obrigação”.

Um ponto interessante é que a lei, quando aponta o sujeito ativo do crime como sendo o passivo da obrigação tributária, o faz de maneira geral, isto é, não distingue o sujeito passivo direto do indireto da obrigação tributária.

Logo, nada impede que o sujeito ativo deste crime possa ser:

• o contribuinte (sujeito passivo direto da obrigação tributária); ou

• o responsável tributário (sujeito passivo indireto da obrigação tributária).

 

Assim, o termo “sujeito passivo de obrigação”, previsto no tipo penal, abrange o contribuinte e o responsável (substituição tributária).

 

Sujeito ativo

O sujeito ativo do crime é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90: “deixar de recolher (...) na qualidade de sujeito passivo da obrigação”.

Um ponto interessante é que a lei, quando aponta o sujeito ativo do crime como sendo o passivo da obrigação tributária, o faz de maneira geral, isto é, não distingue o sujeito passivo direto do indireto da obrigação tributária.

Logo, nada impede que o sujeito ativo deste crime possa ser:

• o contribuinte (sujeito passivo direto da obrigação tributária); ou

• o responsável tributário (sujeito passivo indireto da obrigação tributária).

 

Assim, o termo “sujeito passivo de obrigação”, previsto no tipo penal, abrange o contribuinte e o responsável (substituição tributária).

 

Crime próprio

Doutrinariamente, é classificado como crime próprio, considerando que se exige qualidade especial do sujeito ativo (Luiz Regis Padro, Nucci e Renato Brasileiro), pois demanda uma qualidade especial do agente: “sujeito passivo da obrigação tributária” - responsável ou contribuinte).

þ (2023 - CESPE - MPE-PA - Promotor de Justiça) O crime de apropriação indébita tributária é próprio, de forma que somente pode ser cometido por quem detenha a condição de sujeito passivo da obrigação tributária, seja como contribuinte ou responsável tributário (Certo).

 

Sujeito passivo

Será a União, o Estado-membro ou o Município tributante.

 

Objeto

O objeto do delito é o valor do tributo. No caso, a quantia transferida pelo consumidor ao comerciante.

 

Tipo objetivo

Algumas vezes a legislação estabelece que a pessoa tem, como obrigação tributária acessória, que recolher o tributo ou a contribuição social devida por outra e depois repassar esse valor ao ente tributante.

Ex1: o empregador, ao efetuar o pagamento do salário do empregado, deverá reter uma parcela desse rendimento e repassar tal valor à Receita Federal.

Se a pessoa fizer o desconto e não recolher, no prazo legal, o valor do tributo ou da contribuição social para o Fisco, haverá a prática desse crime.

 

Ex2: Rubens, sócio-gerente de uma sociedade comercial, deixou de recolher, de forma consciente, no prazo legal, o ICMS, referente aos meses de março e abril de 2002, escriturado nos livros fiscais e declarado à administração fazendária. Nessa situação, Rubens praticou, em tese, crime contra a ordem tributária (AGU CESPE 2003).

 

Elemento subjetivo

O delito exige, para sua configuração, que a conduta seja dolosa, consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo.

 

Para que se configure o crime é necessária a existência de elemento subjetivo especial (“dolo específico”)?

SIM.

Para a configuração do delito previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, deve ser comprovado o dolo específico.

STJ. 6ª Turma. HC 675.289-SC, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), julgado em 16/11/2021 (Info 718).

 

A orientação do STJ era no sentido de que para o delito previsto no inciso II do art. 2º da Lei nº 8.137/90, não havia exigência de dolo específico, mas apenas de dolo genérico.

Contudo, o STJ mudou de entendimento depois do julgamento do STF no qual a Corte afirmou que “o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990” (STF. Plenário. RHC 163.334/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 18/12/2019).

Desse modo, deve ser averiguada a existência de dolo específico de apropriação para fins de configuração do delito previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, sob pena de ser reconhecida a absolvição.

 

Dolo de apropriação (= exige dolo específico)

O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90.

STF. Plenário. RHC 163334, Rel. Roberto Barroso, julgado em 18/12/2019.

 

Não se exige clandestinidade

O fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir (fazer desaparecer) o crime. Isso porque, para a configuração deste delito, não se exige clandestinidade (não se exige que seja feito às escondidas).

 

O tipo penal criminaliza a mera conduta de dever o imposto? Trata-se de criminalização do mero inadimplemento?

NÃO. A conduta reprovável criminalizada por este tipo penal não é “dever imposto”, e sim cobrá-lo de terceiro sem repassá-lo ao Fisco, apropriando-se do valor.

Por essa razão, o STF entende que os crimes contra a ordem tributária são compatíveis com a Constituição Federal e não representam prisão por dívida (art. 5º, LXVII, da CF/88):

Os crimes previstos na Lei nº 8.137/90 não violam o disposto no art. 5º, LXVII, da Constituição.

STF. Plenário. ARE 999425 RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 02/03/2017 (repercussão geral).

 

O agente tinha a obrigação tributária de recolher o tributo ou contribuição

A redação do tipo penal fala em deixar de recolher o “valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado”. Isso significa que nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, mas somente aqueles que “descontam” ou “cobram” o tributo ou contribuição.

 

Sentido das palavras “descontado” e “cobrado”

O tipo penal fala que configura o crime deixar de recolher valor de tributo ou de contribuição social, “descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

Conforme explica o Min. Rogerio Schietti Cruz, as palavras “descontado” e “cobrado” não estão empregadas aqui no sentido tributário (HC 399.109-SC).

No Direito Tributário, o sujeito passivo nunca irá “cobrar” o tributo, sendo esta uma atividade do Fisco. O máximo que o sujeito passivo pode fazer é a retenção do tributo para, posteriormente, recolher ao Fisco, como ocorre na substituição tributária.

De igual forma, o sujeito passivo não “desconta” tributos. Tecnicamente, para o Direito Tributário, descontar significa dar desconto, ou seja, conferir abatimento nos casos em que há o pagamento antecipado do crédito tributário (art. 158, parágrafo único, do CTN).

Diante disso, devemos interpretar tais expressões para fins penais. Nessa linha de raciocínio, tem-se o seguinte:

• Descontado: está relacionado com a responsabilidade tributária por substituição. Assim, descontado é o valor recolhido pelo responsável tributário em uma relação jurídica obrigacional tributária cuja responsabilidade se dá por substituição.

• Cobrado: possui semelhante significado ao das palavras “receber”, “embolsar” ou “coletar”. Está, portanto, relacionado com os tributos indiretos, cuja incidência acarretará o aumento do valor do produto a ser suportado pelo contribuinte de fato. Logo, se o valor do ICMS naquela venda era R$ 200,00, o vendedor (contribuinte de direito) irá repassar esse custo ao comprador (contribuinte de fato). Assim, o vendedor irá “cobrar” do comprador esse valor e, se deixar de pagar (recolher) esse valor para o Fisco, pode cometer o delito em tela.

Veja as palavras do Min. Rogerio Schietti Cruz:

“A título de exemplo, menciono o ICMS. O produtor, ao iniciar a cadeia de consumo, recolhe o imposto sobre operações próprias e é reembolsado desse valor com a transferência do encargo para o atacadista que, por sua vez, o transfere para o varejista e que, por fim, repassa para o consumidor final. Veja-se que nessa hipótese, mesmo no caso do ICMS incidente sobre operações próprias, o produtor “cobra” (é reembolsado pela retenção) do próximo adquirente do produto na cadeia de produção, até que o consumidor final, após sucessivas transferências de encargo, suporte o ônus de pagar o valor correspondente ao ICMS, que será acrescido ao valor final do produto. Não há, portanto, "descontos" em nenhuma circunstância.” (HC 399.109-SC).

 

Feita essa explicação sobre a apropriação indébita tributária, vamos agora entender a controvérsia resolvida pela súmula a partir da seguinte situação hipotética:

João é sócio-gerente de uma loja de confecções.

Ele vendeu diversas roupas e, no preço, embutiu os custos que ele teria com o ICMS.

Em outras palavras, ele realizou operações que configuram fato gerador de ICMS.

João entregou a Guia de Informação e Apuração do ICMS (chamada de GIA) ao Fisco Estadual, mas não recolheu o tributo devido.

Sobre o tema, vale lembrar a Súmula 436 do STJ: A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco.

Diante da ausência de pagamento, João foi cobrado pelo Fisco.

Além disso, o Ministério Público denunciou o comerciante pela prática do crime previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90.

 

Tese da defesa

A defesa argumentou que, no caso concreto, as operações que geraram o ICMS eram operações próprias, ou seja, operações nas quais o sujeito passivo era o próprio agente (não era caso de substituição tributária).

Para a defesa, o art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 somente deveria ser aplicado para os casos de responsabilidade tributária por substituição (substituição tributária).

Nos casos em que não há o repasse de ICMS recolhido em operações próprias, não haveria crime, mas sim mero inadimplemento fiscal.

Em suma, a defesa alegou que o comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, não realiza o pagamento do tributo, não deixa de repassar ao Fisco valor cobrado ou descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria.

 

A tese da defesa foi acolhida pelo STJ?

NÃO.

A conduta de não recolher ICMS enquadra-se no tipo previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, seja em caso de “operações próprias”, seja em caso de “substituição tributária”. Isso porque ambas as situações estão abrangidas pelas expressões “descontado” e “cobrado”:

• “descontado”: refere-se aos casos de tributos diretos em que há a responsabilidade por substituição tributária, ou seja, relaciona-se com as hipóteses em que o responsável pela retenção na fonte não paga o tributo ao Fisco.

• “cobrado”: refere-se aos tributos indiretos, mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto. No caso do ICMS (que é um tributo indireto), o encargo com o pagamento deste imposto é transferido (repassado) em cada uma das operações para o adquirente e, no final, quem vai arcar economicamente com o valor do imposto é o consumidor final. Ex: distribuidora “A” vende para o atacadista “B”; neste preço já estará embutido o custo com o ICMS; “B” revende a mercadoria para a loja “C”; neste preço também já estará embutido o custo com o ICMS, ou seja, “B” já repassou o custo para “C”; a loja “C”, por sua vez, irá vender para o consumidor final e, no preço comercializado, estará também o custo do ICMS. Assim, no fim das contas, quem vai pagar, de fato, é o consumidor.

 

Por essa razão, o STJ considera que a conduta de não recolher ICMS configura o crime do art. 2º, II, mesmo em caso de “operações próprias”. Isso porque o vendedor “cobra” do consumidor o valor do ICMS. Se não repassa ao Fisco, significa que ele apropriou o tributo “cobrado”.

Nesse sentido, configura um dos precedentes que deu origem à súmula:

A conduta de não recolher ICMS em operações próprias ou em substituição tributária enquadra-se formalmente no tipo previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 (apropriação indébita tributária), desde que comprovado o dolo.

O não repasse do ICMS recolhido pelo sujeito passivo da obrigação tributária, em qualquer hipótese, enquadra-se (formalmente) no tipo previsto art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, desde que comprovado o dolo.

Em outras palavras, o tipo do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 não fica restrito apenas às hipóteses em que há substituição tributária.

STJ. 3ª Seção. HC 399.109-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/08/2018 (Info 633).

 

Conforme explica o Min. Reynaldo Soares da Fonseca:

“(...) o que se criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar do dinheiro relativo ao imposto, devidamente recebido de terceiro, quer porque descontou do substituído tributário quer porque cobrou do consumidor, não repassando aos cofres públicos.

(...)

(...) tendo o consumidor arcado com o imposto, tem-se que o valor foi dele cobrado sem que tenha sido devidamente repassado aos cofres públicos, havendo, assim, sua indevida apropriação.

Portanto, não há se falar em atipicidade penal nos casos em que o imposto foi previamente descontado ou cobrado do consumidor final, na composição dos valores do produto.”

 

Em suma:

Súmula 658-STJ: O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias, como em razão de substituição tributária.


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