domingo, 12 de novembro de 2023

Para a configuração do crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP), não é indispensável a restrição da liberdade das vítimas

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é proprietário de uma enorme fazenda.

Ele contratou Pedro para que arregimentasse trabalhadores para a fazenda e também gerisse as atividades desses trabalhadores no imóvel rural.

Pedro contratou cinco trabalhadores, porém sem que fosse assegurado a eles qualquer direito previsto na legislação trabalhista, mantendo-os em condições degradantes, análogas à de escravo.

Não havia registro do contrato de trabalho, nem recolhimento de FGTS.

Essa situação perdurou até 11/05/2011, quando uma equipe do Ministério do Trabalho e do Emprego fez uma fiscalização no local e resgatou os trabalhadores.

A equipe constatou que os trabalhadores permaneciam em um barraco de madeira improvisado com lona preta, com chão de terra batida. Nos fundos desse barraco, em local improvisado, era feito o preparo dos alimentos e armazenados os equipamentos para aplicação de agrotóxico, sem qualquer tipo de higiene.

A água para consumo e higiene era retirada de um córrego nos fundos do barraco, no mesmo local onde eram lavados os equipamentos de aplicação de agrotóxicos.

O MPF ofereceu denúncia contra João e Pedro pela prática do crime de redução à condição análoga a de escravo, tipificado pelo art. 149 do CP:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

(...)

 

De quem é a competência para julgar este delito?

Justiça Federal, nos termos do art. 109, VI, da CF/88:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(...)

VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;

 

Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo, na forma do art. 109, VI, da CF/88 (STF. Plenário. RE 459510, Rel. Min. Cezar Peluso, Rel. para acórdão Min. Dias Toffoli, julgado em 26/11/2015).

 

Absolvição sumária

O juiz absolveu sumariamente os réus sob o argumento de que a submissão de trabalhadores a condições degradantes de trabalho, por si só, não consubstanciaria a prática do crime de trabalho escravo, uma vez que o tipo penal exigiria, em acréscimo, a existência de um estado de sujeição tal que a vontade do trabalhador afigurar-se-ia irrelevante, o que não se teria demonstrado nos autos, considerando que os trabalhadores teriam declarado não haver cerceamento da liberdade por dívida, retenção de documentos, isolamento físico ou vigilância ostensiva.

Em outras palavras, o magistrado afirmou que o crime não se configurou porque não houve efetiva restrição de liberdade das vítimas.

 

A decisão do juiz está de acordo com a jurisprudência do STF e STJ?

NÃO.

O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única.

O art. 149 do CP prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho.

Assim, para a configuração do crime, não é indispensável a prática de violência ou a restrição da liberdade. Muita atenção para isso. Trata-se do entendimento pacífico do STF e STJ:

(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano (...)

STF. 2ª Turma. Inq 3564, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 19/08/2014.

 

(...) Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. (...)

STF. Plenário. Inq 3412, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Rosa Weber, julgado em 29/03/2012.

 

(...) O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. (...)

STJ. 5ª Turma. REsp 1223781/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/08/2016.

 

O delito de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.843.150/PA, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe de 2/6/2020.

 

Para configurar o delito do art. 149 do Código Penal (redução a condição análoga à de escravo) NÃO É imprescindível a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores.

O delito pode ser praticado por meio de outras condutas como no caso em que os trabalhadores são sujeitados a condições degradantes, subumanas.

STJ. 3ª Seção. CC 127937-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 28/5/2014 (Info 543).

 

Portanto, ante a existência de indícios de que os trabalhadores atuavam em condições degradantes e tendo em vista que a efetiva restrição de liberdade das vítimas é prescindível para a configuração do tipo penal em espécie, o qual consubstancia crime de ação múltipla e de conteúdo variado, a conduta imputada aos denunciados pode, em tese, revelar-se típica.

 

Em suma:

A efetiva restrição de liberdade das vítimas é prescindível para a configuração do crime de redução a condição análoga à de escravo. 

STJ. 5ª Turma. REsp 1.969.868-MT, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 12/9/2023 (Info 787).


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