quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Mesmo com a expedição de carta precatória, que não suspende a instrução criminal, o interrogatório deve ser o último ato, não podendo ser realizado antes da oitiva das testemunhas

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 2014, João foi denunciado pelo crime de abuso de confiança (art. 155, § 4º, II do Código Penal).

O processo tramita na comarca de Londrina (PR).

O juiz recebeu a denúncia e designou audiência de instrução.

A defesa informou que o réu estava residindo na cidade de Curitiba (PR) e que, por questões de saúde, não poderia comparecer de forma presencial para os atos do processo. Desse modo, pugnou para que seu interrogatório fosse realizado via carta precatória.

No dia 22/02/2015, foi realizada a audiência de instrução, presencial, em Londrina, na qual foram ouvidas três testemunhas.

Diante da ausência de uma testemunha (Pedro), o MP pediu para que o juiz designasse uma nova audiência para continuação da instrução, com a oitiva da testemunha que não pode comparecer.

O magistrado designou nova audiência para ouvir a testemunha Pedro, marcando para o dia 26/08/2015.

Em 14/05/2015, o réu foi interrogado, via carta precatória, em Curitiba.

Em 26/08/2015, em continuação audiência de instrução, foi realizada a oitiva de Pedro, testemunha arrolada pela acusação.

A defesa apresentou alegações finais discutindo apenas o mérito, sem mencionar nenhuma nulidade.

O juiz condenou o réu.

O condenado, com novo advogado, interpôs apelação arguindo, preliminarmente, o reconhecimento da nulidade do interrogatório e dos atos subsequentes, sob o argumento de que o interrogatório deveria ter sido o último ato da instrução, nos termos do art. 400 do CPP:

Art. 400.  Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

 

A defesa afirmou que o réu foi ouvido antes da principal testemunha do MP (Pedro), o que lhe causou prejuízo concreto.

O Tribunal manteve a sentença.

Os Desembargadores rejeitaram a preliminar de nulidade argumentando que:

- em regra, o interrogatório é o último ato da instrução;

- no entanto, o art. 400 c/c o art. 222, § 1º, do CPP autorizam a inversão dessa ordem no caso de interrogatório via carta precatória. Isso porque a expedição da carta precatória não suspende a instrução criminal. Logo, depois a carta precatória ter sido expedida, é possível que o juízo deprecante continua todos os atos de instrução mesmo que a carta ainda não tenha voltado:

Art. 222.  A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.

§ 1º A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal.

(...)

 

Art. 400.  Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

 

Além disso, o Tribunal entendeu que condenação foi embasada não só no depoimento da testemunha de acusação ouvida posteriormente ao interrogatório do acusado, mas também em outros elementos probatórios – com ausência de prejuízo concreto.

Inconformada, a defesa interpôs recurso especial insistindo na tese da nulidade.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

Em parte.

 

O interrogatório pode ser realizado antes da oitiva da testemunha?

NÃO.

O interrogatório do réu é o último ato da instrução criminal.

A audiência de instrução e julgamento é o principal ato do processo, momento no qual se produzirão as provas, sejam elas testemunhais, periciais ou documentais, ao fim da qual, a decisão será proferida.

Por esta razão, o art. 400 determina que a oitiva da vítima, das testemunhas arroladas pela acusação e depois pela defesa, nesta ordem, eventuais esclarecimentos de peritos, acareações, ou reconhecimento de coisas ou pessoas e, por fim, o interrogatório.

A redação dada ao art. 400 pela Lei nº 11.719/2008, significou a consagração e maximização do devido processo legal, notadamente na dimensão da ampla defesa e do contraditório ao deslocar o interrogatório para o final da instrução probatória.

 

É possível que o interrogatório do réu seja feito antes da oitiva da testemunha em caso de carta precatória?

NÃO.

A inversão da ordem prevista no art. 400 do CPP somente se aplica para a oitiva das testemunhas e não para o interrogatório.

A ressalva feita ao art. 222 do CPP, no art. 400, vem inscrita imediatamente após a ordem determinada para a oitiva das testemunhas, deixando claro que o legislador somente autorizou que se flexibilize excepcionalmente a inversão desta ordem, em caso de pendência de cumprimento de carta precatória, exclusivamente em relação à oitiva das testemunhas de acusação e defesa.

O interrogatório é o momento em que o réu pode se contrapor à acusação e aos fatos eventualmente suscitados pelas testemunhas, o que, por si, reclama de forma irrefutável que a fala do réu venha após todas as demais, seja em que ordem elas tenham sido realizadas, viabilizando, assim, a ampla defesa de toda a carga acusatória.

Corrobora esta posição, a moderna concepção do contraditório, segundo a qual a defesa deve influenciar a decisão judicial, o que somente se mostra possível quando a sua resposta se embase no conhecimento pleno das provas produzidas pela acusação. Somente assim se pode afirmar observância ao devido contraditório.

 

Isso significa que a condenação de João será anulada no presente caso?

NÃO.

O eventual reconhecimento da nulidade se sujeita à preclusão, na forma do art. 571, I e II, do CPP:

Art. 571.  As nulidades deverão ser argüidas:

I - as da instrução criminal dos processos da competência do júri, nos prazos a que se refere o art. 406;

II - as da instrução criminal dos processos de competência do juiz singular e dos processos especiais, salvo os dos Capítulos V e Vll do Título II do Livro II, nos prazos a que se refere o art. 500;

(...)

 

Assim, o réu deveria ter arguido a nulidade na própria audiência ou no primeiro momento oportuno em que tiver conhecimento da inversão da ordem em questão.

No caso concreto, o acusado arguiu a nulidade somente em razões de apelação.

Além disso, cabe também à defesa a demonstração do prejuízo concreto.

No caso em tela, a defesa se limitou a afirmar que Pedro era a testemunha mais importante. Ocorre que o juízo condenou com fundamento em outros depoimentos e provas.

 

Em suma:

O interrogatório do réu é o último ato da instrução criminal.

A inversão da ordem prevista no art. 400 do CPP tangencia somente à oitiva das testemunhas e não ao interrogatório.

O eventual reconhecimento da nulidade se sujeita:

• à preclusão, na forma do art. 571, I e II, do CPP, e

• à demonstração do prejuízo para o réu.

STJ. 3ª Seção. REsps 1.933.759-PR e 1.946.472-PR, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 13/9/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1114) (Info 787).


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