quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O Ministério Público possui legitimidade para requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de mulher vítima de violência doméstica?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Renato, 18 anos, agrediu sua irmã Simone.

Na época, Simone era menor de idade e sua genitora optou por não dar prosseguimento ao processo.

Renato voltou a agredir Simone, com socos, chutes, além de desferir vários golpes na vítima com um cabo de vassoura e um martelo de madeira.

Foi decretada a prisão preventiva do agressor.

Renato foi condenado, porém teve que ser solto porque já tinha permanecido preso preventivamente por tempo superior à pena imposta.

Na audiência, antes de ser posto em liberdade, Renato afirmou que irá voltar à casa da sua mãe, e que não acha certo ter que sair de casa “só por causa da sua irmã”.

Diante desse comportamento do irmão e com receio de sofrer novas agressões, Simone compareceu perante o Ministério Público e solicitou a aplicação de medidas protetivas necessárias.

O MP requereu a aplicação das seguintes medidas protetivas: proibição de entrar em contato com a vítima Simone, devendo Renato manter uma distância mínima de 400 metros.

Mencionadas medidas protetivas foram deferidas pelo Juiz. Ocorre, poucos meses depois, foi certificada a ausência de instauração de inquérito policial e o procedimento de aplicação de medidas protetivas foi arquivado, determinando-se ao Ministério Público que ingressasse com a ação cabível, se assim entendesse.

O MP ingressou, então, com ação civil pública com obrigação de não fazer em desfavor de Renato, pedindo que o juízo aplicasse as seguintes medidas para proteção da ofendida:

1) determinação para que Renato seja proibido de se aproximar de Simone a uma distância inferior a 400m;

2) proibição de manter contato com Simone; e;

3) afastamento de Renato do lar comum.

 

O Juiz indeferiu liminarmente a inicial.

De acordo com a decisão, o caso dos autos envolve interesse individual puro e simples, não se verificando, na espécie, interesses e direitos transindividuais ou outra hipótese capaz de autorizar o MP a postular em juízo direito alheio.

Destacou que “ainda que se considere como direito indisponível, é certo que o ordenamento infraconstitucional não autoriza o Ministério Público a agir, em demandas cíveis referentes a violência doméstica, como substituto processual, diferente do que o faz em caso de direitos relativos à infância e juventude, idoso ou portador de deficiência”.

Entendeu que “a atuação ministerial somente se justificaria quando a situação de vulnerabilidade da pessoa, ou o contexto em que se encontra inserida, possam impedi-la de buscar seus direitos”.

Concluiu, portanto, que “cabe à própria interessada buscar a satisfação de sua pretensão”.

O Ministério Público não concordou e interpôs apelação.

O Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso.

Ainda inconformado, o Parquet interpôs recurso especial.

 

O STJ deu provimento ao recurso do MP? O Ministério Público possui legitimidade para requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de mulher vítima de violência doméstica?

SIM.

O art. 25 da Lei nº 11.340/2006 determina que o Ministério Público é legítimo para atuar nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.

 

A Primeira Seção do STJ, em recurso repetitivo, firmou a tese de que o Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se trata de direitos individuais indisponíveis:

O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1º da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).

STJ. 1ª Seção. REsp 1682836-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 25/04/2018 (Recurso Repetitivo – Tema 766) (Info 624).

 

Segundo o STJ, o limite para a legitimidade da atuação judicial do Ministério Público vincula-se à disponibilidade, ou não, dos direitos individuais vindicados, isto é, tratando-se de direitos individuais disponíveis, e não havendo uma lei específica autorizando, de forma excepcional, a atuação dessa instituição permanente, não se pode falar em legitimidade de sua atuação. Contudo, se se tratar de direitos ou interesses indisponíveis, a legitimidade ministerial decorre do art. 1º da Lei nº 8.625/93:

Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Parágrafo único. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

 

Vale ressaltar, ainda, que o STJ entende que é viável a ação civil pública não apenas para tutelar conflitos de massa (direitos transindividuais), mas também se revela como o meio pertinente à tutela de direitos e interesses indisponíveis e/ou que detenham suficiente repercussão social, aproveitando, em maior ou menor medida, toda a coletividade.

A medida protetiva de urgência requerida para resguardar interesse individual de mulher vítima de violência doméstica tem natureza indisponível, e, pela razoabilidade, não se pode entender pela disponibilidade do direito, haja vista que a Lei nº 11.340/2006 surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como um dos instrumentos que resguardam os tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é parte, e assumiu o compromisso de resguardar a dignidade humana da mulher, dentre eles, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

A Lei Maria da Penha foi criada como mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição da República, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Portanto, conclui-se que, no âmbito do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, por se tratar de direito individual indisponível, o MP possui legitimidade para atuar tanto na esfera jurídica penal, quanto na cível, nos termos do art. 1º da Lei nº 8.625/93 e art. 25 da Lei nº 11.340/2006.

 

Em suma:

O Ministério Público possui legitimidade para requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de mulher vítima de violência doméstica.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.828.546-SP, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), julgado em 12/9/2023 (Info 788).


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