terça-feira, 28 de novembro de 2023

É possível a majoração da pena-base pelo fato de o réu, no interrogatório, ter imputado falsamente a prática do crime a um terceiro?

Critério trifásico

A dosimetria da pena na sentença obedece a um critério trifásico:

1º passo: o juiz calcula a pena-base de acordo com as circunstâncias judiciais do art. 59, CP.

2º passo: o juiz aplica as agravantes e atenuantes.

3º passo: o juiz aplica as causas de aumento e de diminuição.

 

Primeira fase (circunstâncias judiciais)

Na primeira fase, as chamadas circunstâncias judiciais analisadas pelo juiz são as seguintes:

a) culpabilidade, b) antecedentes, c) conduta social, d) personalidade do agente, e) motivos do crime, f) circunstâncias do crime, g) consequências do crime, h) comportamento da vítima.

 

Veja a redação do art. 59 do CP:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

(...)

 

O que é a culpabilidade de que trata o art. 59 do CP? Tem relação com a culpabilidade requisito do crime?

NÃO.

Para fins de dosimetria da pena, culpabilidade consiste na reprovação social que o crime e o autor do fato merecem. Ex: a culpabilidade (reprovabilidade) do crime de furto é intensa (elevada) se o agente, além de furtar os bens da casa, ainda urina no chão da residência ou nos móveis do proprietário. Neste caso, a pena-base poderia ser aumentada por causa disso.

Essa culpabilidade de que trata o art. 59 do CP não tem nada a ver com a culpabilidade como requisito do crime (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do fato e exigibilidade de conduta diversa).

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

O juiz, a pedido da autoridade policial, expediu mandado de busca e apreensão, a ser cumprido na residência de João, suspeito de ter roubado uma motocicleta.

A motocicleta não foi encontrada no local. Por outro lado, os policiais localizaram droga na residência.

João foi denunciado.

Em seu interrogatório, João afirmou que Francisco, seu vizinho, teria arrombado sua residência um dia antes e “plantado” a droga no local, com o propósito de lhe prejudicar.

As provas produzidas demonstraram que não houve arrombamento e que Francisco não tinha como ter colocado a droga na residência de João considerando que estava preso no dia dos fatos.

João foi então condenado por tráfico de drogas.

No momento da dosimetria da pena, o juiz aumentou a pena-base argumentando que o fato de João ter atribuído a autoria do crime a terceiro (no caso, Francisco) deveria ser utilizado como circunstância judicial negativa (culpabilidade elevada). Afirmou o magistrado:

“A culpabilidade do réu, considerada como grau de reprovabilidade de sua conduta, excedeu a normalidade para a espécie. Isso porque, não obstante ser surpreendido com a droga, o réu, de forma maliciosa, tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (seu vizinho, Francisco) a responsabilidade por ter ‘plantado’ o entorpecente em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia. Ao assim agir, o acusado demonstrou total despreocupação com as consequências criminais que poderiam advir de sua ‘versão’ dos fatos (incriminação injusta de um terceiro). Essa atitude extrapolou os limites da garantia constitucional da ampla defesa”.

 

O réu recorreu alegando que não havia elementos suficientes para justificar a valoração negativa da culpabilidade.

 

O que decidiu o STJ? Agiu corretamente o magistrado? É possível a majoração da pena-base pelo fato de o réu ter mentido no interrogatório, imputando a prática do crime a terceiro?

NÃO.

Ainda que o falseamento da verdade eventualmente possa, a depender do caso e se cabalmente comprovado, justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa que essa prática, no interrogatório, autorize a exasperação da pena-base do acusado.

O conceito de culpabilidade, como circunstância judicial prevista o art. 59, do Código Penal, está relacionado com a reprovabilidade/censurabilidade da conduta do agente, de forma que deve o magistrado, quando da aplicação da pena-base, dimensioná-la pelo nível de intensidade da reprovação penal e expor sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento. Trata-se de aferir o grau de reprovabilidade do fato criminoso praticado pelo réu.

No caso, a culpabilidade do acusado foi valorada negativamente sob o argumento de que tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (vizinho) a responsabilidade por ter plantado drogas em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia.

O fato de o réu atribuir falsamente crime a terceiro no interrogatório não é circunstância que diga respeito à sua culpabilidade. A culpabilidade, como vimos, está relacionada com o grau de reprovabilidade pessoal da conduta imputada ao acusado. O interrogatório constitui fato posterior à prática da infração penal, de modo que uma declaração dada no interrogatório não pode ser usada retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de um crime ocorrido no passado.

O exame da sanção penal cabível deve ser realizado, em regra, com base somente em elementos existentes até o momento da prática do crime imputado. As únicas exceções a essas regra são as seguintes:

a) o exame das consequências do delito, que, embora posteriores, representam mero desdobramento causal direto dele, e não novas e futuras condutas do acusado retroativamente valoradas;

b) o superveniente trânsito em julgado de condenação por fato praticado no passado, uma vez que representa a simples declaração jurídica da existência de evento pretérito.

 

Nem mesmo nas circunstâncias da personalidade ou da conduta social seria possível considerar desfavoravelmente a mentira do réu em interrogatório judicial. O paralelo feito por alguns doutrinadores com a confissão (se a confissão revela aspecto favorável da personalidade e atenua a pena, a mentira supostamente revelaria o oposto e poderia autorizar o seu aumento), embora interessante, é assimétrico e não permite que dele se extraia tal conclusão.

A confissão e diversos outros institutos que permitem o abrandamento da sanção (colaboração premiada, arrependimento posterior etc.) integram o chamado Direito penal premial e se justificam como ferramentas para valorizar e estimular a postura que o réu adota depois da prática do delito para mitigar seus efeitos ou facilitar a atividade estatal na sua persecução. Diferente, porém, é a análise sobre o que pode legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente causal, do fato imputado na denúncia (por exemplo, nos termos acima esclarecidos, as consequências do crime).

O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos depois.

 

Em suma:

O fato de o réu mentir em interrogatório judicial, imputando prática criminosa a terceiro, não autorização a majoração da pena-base. 

STJ. 6ª Turma. HC 834.126-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/9/2023 (Info 789).


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