quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

A “autópsia psicológica” constitui prova atípica admissível no processo penal, cabendo ao magistrado controlar a sua utilização no caso concreto

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Danilo, Sargento da Polícia Militar, morreu com um disparo de arma de fogo em seu peito.

O fato ocorreu dentro do apartamento onde residia com sua esposa, Miriam, Agente da Polícia Civil.

A ocorrência foi inicialmente registrada como suicídio.

No entanto, durante a investigação, a polícia concluiu tratar-se de homicídio, apontando Miriam como sendo suposta autora do disparo.

Segundo essa linha de investigação, o crime teria sido praticado em razão de supostas traições de Danilo.

O ponto juridicamente interessante vem agora. Durante o inquérito, foi realizado um “Laudo de Autópsia Psicológica”.

 

Autópsia psicológica

“A autópsia psicológica pode ser definida como um tipo de avaliação psicológica realizada retrospectivamente através de uma investigação imparcial, que objetiva compreender os aspectos psicológicos de uma determinada morte. Busca-se compreender o que havia na mente do indivíduo. Ela visa reconstruir a vida psicológica de um indivíduo, analisando o seu estilo de vida, a personalidade, a saúde mental, os pensamentos, os sentimentos e os comportamentos precedentes a morte, a fim de alcançar um maior entendimento sobre as circunstâncias que contribuíram para o fato. Além disso, a autópsia psicológica pode auxiliar no esclarecimento do modo da morte, que pode ser natural, acidental, por suicídio ou homicídio (Clark & Horton-Deustch, 1992; Gavin e Rogers, 2006; Isometsä, 2001; Jacobs e Klein-Benheim, 1995; Shneidman, 1992, 1994, 2004).” (MIRANDA, Tatiane Gouveia de. Autópsia psicológica: compreendendo casos de suicídio e o impacto da perda. Dissertação (mestrado), Universidade de Brasília. Brasília, 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream /10482/16392/1/2014_ TatianeGouveiaMiranda.pdf)

Ainda de acordo com a pesquisadora acima citada, a autópsia psicológica envolve basicamente dois procedimentos principais:

1) entrevistas com pessoas que conheciam e conviviam com o falecido, como cônjuge, parentes, amigos, empregados, profissionais que o acompanharam, entre outros; e

2) coleta e análise de documentos relevantes, como prontuários, registros clínicos, diários pessoais, nota de suicídio, se houver.

 

Voltando ao caso concreto:

Como dito, foi realizada uma autópsia psicológica e o laudo concluiu que, do ponto de vista material, o suicídio seria “pouco provável”.

Segundo o laudo, os principais fundamentos que levaram a essa conclusão foram os seguintes: a vítima não indica traços comportamentais compatíveis com suicídio; em mensagem de áudio enviada pela vítima a familiares pouco tempo antes de sua morte não havia nada anormal na entonação de sua voz; a trajetória do projétil e a posição provável da arma não é comum de suicídio.

Além da autópsia psicológica, foi também realizada a necropsia que, no entanto, foi inconclusiva. A reprodução simulada também foi inconclusiva.

Na sequência, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Miriam por homicídio qualificado por motivo torpe (art. 121, §2º, I, Código Penal).

A denúncia foi recebida.

 

Impugnação da autópsia psicológica

Durante a instrução, a ré impugnou a “autópsia psicológica”, sob o fundamento de que se tratava de prova inadmissível.

A impugnação foi rejeitada pelo juiz e a ré foi pronunciada.

Inconformada, Miriam interpôs recurso em sentido estrito contra a sentença de pronúncia.

O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso afirmando que a autópsia psicológica é “uma que prova utilizada para a formação da convicção dos julgadores e não se encontra no rol daquelas expressamente proibidas e ou com violação aos direitos materiais ou constitucionais, ainda que não elencada na legislação processual penal”.

Ainda inconformada, a ré interpôs recurso especial insistindo na tese de que a autópsia psicológica é prova inadmissível em razão da ausência de “previsão legal, tampouco metodologia científica adequada”.

 

O STJ deu provimento ao recurso da ré? Os argumentos da defesa foram acolhidos?

NÃO.

Inicialmente, é importante pontuar que a busca pela verdade no processo penal encontra limitação nas regras de admissão, de produção e de valoração do material probatório, o qual servirá de suporte ao convencimento do julgador. Afinal, os fins colimados pelo processo penal são tão importantes quanto os meios de que se utiliza (STJ. 3ª Seção. Reclamação 36.734/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJe 22/2/2021).

 

O rol de provas nominadas do CPP não é exaustivo

A primeira questão a ser enfrentada diz respeito à ausência de taxatividade das provas nominadas no Código de Processo Penal.

Não existe um dispositivo específico que trate sobre as provas atípicas no CPP. No entanto, é possível utilizar, por analogia - como autoriza o art. 3º do CPP -, o art. 369 do Código de Processo Civil, que dispõe:

Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

 

No mesmo sentido, estabelece o art. 295 do Código de Processo Penal Militar:

Art. 295. É admissível, nos termos deste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a disciplina militares.

 

Nesse contexto, embora não haja dispositivos semelhantes no Código de Processo Penal, a doutrina defende que “há consenso de que também não vigora no campo penal um sistema rígido de taxatividade dos meios de prova, sendo admitida a produção de provas não disciplinadas em lei, desde que obedecidas determinadas restrições” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Provas atípicas e provas anômalas: inadmissibilidade da substituição da prova testemunhal pela juntada e declarações escritas de quem poderia ser testemunha”, In: Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 344).

Significa dizer, em última análise, que o rol de provas previsto no Título VII do CPP é exemplificativo.

Assim, o simples fato de não constar do catálogo legal relacionado às “provas em espécie” não configura razão suficiente para que a perícia ora impugnada seja considerada inadmissível. Entendimento em contrário exigiria do legislador uma irrealizável atualização constante do rol normativo com vistas a acompanhar todas as inovações tecnológicas. Isso porque existe um inegável contraste entre a velocidade com que o conhecimento científico é construído e o tempo de atualização normativa.

 

Provas atípicas devem se submeter a critérios para serem admitidas

As provas científicas atípicas devem submeter-se a critérios específicos para sua aceitação - e consequente admissão - no processo penal.

A controlabilidade do correto uso do conhecimento técnico é corolário de um sistema que refuta, de antemão, os mitos da verdade e da confiabilidade absoluta da prova científica.

É necessário, portanto, que se estabeleçam critérios de verificabilidade das provas científicas, com o intuito de se evitar o cometimento de injustiças epistêmicas.

 

Esse cuidado deve ser ainda maior em se tratando de crimes de competência do Júri

A questão relacionada à admissibilidade da prova técnica ganha bastante relevo no caso em tela por se tratar de processo submetido ao Tribunal do Júri - cuja decisão meritória, consequentemente, não está sujeita à fundamentação.

Por esse motivo, incumbe ao julgador, devidamente provocado pela parte ré, realizar o controle da admissão da prova para evitar que os jurados “possam ser induzidos a erro ou confusões, com base em uma prova derivada de uma pseudociência, mas que goze da mítica infalibilidade das ciências. [...] Com isso, os juízes de fato não terão contato com a 'má ciência', caso essa não seja admitida” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 192).

 

Analisando especificamente o caso da autópsia psicológica

A “autópsia psicológica”, raras vezes utilizada na praxis forense brasileira, consiste em exame retrospectivo que busca compreender os aspectos psicológicos envolvidos em mortes não esclarecidas. Trata-se de um método “concebido como meio para auxiliar médicos legistas a esclarecer a natureza de uma morte tida como indeterminada e que poderia estar associada a uma causa natural, acidental, suicídio ou homicídio. O método também foi utilizado para conhecer as razões que motivaram mortes autoinfligidas” (CAVALCANTE, Fátima Gonçalves; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Autópsias psicológicas e psicossociais de idosos que morreram por suicídio no Brasil. Revista Ciência e Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Volume 17, número 8, 2012, p. 1.944).

Por se tratar de uma estratégia complexa, faz-se imperiosa a observância de critérios epistêmicos para a redução do viés produzido pela subjetividade inerente a esse instrumento de avaliação. Daí a importância de fixação de critérios de admissibilidade das provas científicas no processo penal.

Do contrário, o que se tem é um “recurso subjetivo, não fidedigno e com dificuldades para chegar a ser um instrumento adequadamente validado” (WERLANG, Blanca Susana Guevara. Autópsia Psicológica, importante estratégia de avaliação retrospectiva. Revista Ciência e Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Volume 17, número 8, 2012, p. 1.956. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/9VvMztDcc7MZW6sfcw7YqyS/?lang=pt).

Nesse sentido, “a autópsia psicológica pode ser tão ampla e ilimitada como são os conteúdos possíveis de se aplicar a ela. E é justamente essa variabilidade que faz com que a autópsia psicológica seja criticada, por se aplicar a muitos contextos e ainda não possuir um modelo padrão universal e validado pela comunidade científica” (GOMES, Flavia Nieto. O contributo da autópsia psicológica na investigação de mortes suspeitas. Dissertação [Mestrado em Ciências Policiais - Criminologia e Investigação Criminal]. Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Lisboa, 2017, p. 21. Disponível em: l1nq.com/EN0wO).

 

Autópsia psicológica não é prova ilícita, mas deve ser analisada com cautela

Verifica-se, portanto, que a “autópsia psicológica” acostada aos autos não constitui prova ilícita ou ilegítima, razão pela qual não deverá ser desentranhada.

Além disso, é admissível, por ser possível ser refutada - seja porque há indicação das fontes originárias dos depoimentos, preservando a cadeia de custódia, seja porque os assistentes técnicos puderam contestar sua cientificidade no curso do processo.

No entanto, trata-se de prova ainda não padronizada pela comunidade científica e erigida, inegavelmente, em aspectos subjetivos - limitando-se a concluir, no caso sub judice, ser “pouco provável” a ocorrência de suicídio.

Assim, incumbirá aos jurados, juízes naturais da causa, realizar o cauteloso cotejo do referido laudo com o restante do acervo probatório acostado aos autos.

 

Em suma:

A “autópsia psicológica” constitui prova atípica admissível no processo penal, cabendo ao magistrado controlar a sua utilização no caso concreto.

STJ. 6ª Turma. HC 740.431-DF, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/9/2022 (Info Especial 10).

 

 


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