quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor pode ser adotada nas relações jurídicas regidas exclusivamente pelo Direito Civil?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 28/10/2005, João faleceu e deixou alguns bens como herança para seus filhos (Regina, Pedro e Tiago). Um desses bens foi uma casa no bairro das Flores.

Em 28/12/2005, Ricardo adquiriu de Regina, Pedro e Tiago os direitos hereditários desse imóvel (casa no bairro das Flores) pelo valor de R$ 100 mil, negócio celebrado mediante escritura pública de cessão de direitos hereditários. O preço foi totalmente pago.

Passados muitos anos, os herdeiros, por não pagarem os impostos devidos, não concluíram o inventário. Consequentemente, Ricardo não consegue transferir a casa para o seu nome.

Diante desse cenário, em 2014, Ricardo ajuizou ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais em face dos alienantes.

O pedido de danos morais está fundamentado na inércia injustificada dos requeridos, dada a não conclusão do procedimento de inventário, com recolhimento de tributos e tarifas, para o que imóvel fosse registrado.

O autor afirmou que teria havido dano moral em razão do tempo perdido procurando os alienantes. Invocou a Teoria do Desvio Produtivo. Afirmou que é necessário indenizar o tempo desperdiçado pelo cidadão para resolver problema criado por outra pessoa e em relação ao qual não deu causa.

 

Teoria do desvio produtivo

A doutrina, há alguns anos, vem defendendo a possibilidade de responsabilidade civil pela perda injusta e intolerável do tempo útil.

O autor invocou a chamada a “Teoria do desvio produtivo do consumidor”. O que vem a ser isso?

Trata-se de uma teoria desenvolvida por Marcos Dessaune, autor do livro Desvio Produtivo do Consumidor – O Prejuízo do Tempo Desperdiçado. São Paulo: RT, 2011.

Segundo o referido doutrinador,

“O desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências — de uma atividade necessária ou por ele preferida — para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável.”

 

Logo, o consumidor deverá ser indenizado por este tempo perdido.

 

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor é aceita pelo STJ nas relações de consumo?

SIM. Existem pelo menos três julgados do STJ nos quais já se aplicou a referida teoria.

No primeiro deles, o STJ afirmou que o tempo despendido injustamente pelo consumidor mereceria proteção, pois “à frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, não é razoável que se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado – ou, ao menos, atenuado – se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.634.851/RJ, Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/9/2017).

Posteriormente, no julgamento do REsp 1737412 /SE, a Terceira Turma, em processo envolvendo dano moral coletivo e o descumprimento de normas municipais e federais que estabelecem parâmetros para a adequada prestação do serviço de atendimento presencial em agências bancárias, assentou, mais uma vez abordando a mencionada teoria, que “o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil do consumidor” (REsp 1.737.412/SE, julgado em 5/2/2019).

Finalmente, no julgamento do REsp 1929288/TO, o STJ, com base na referida construção doutrinária, consignou que “a inadequada prestação de serviços bancários, caracterizada pela reiterada existência de caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, é apta a caracterizar danos morais coletivos” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.929.288/TO, julgado em 22/2/2022).

 

No caso hipotético acima narrado, é possível aplicar a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor para fundamentar o direito de Ricardo de ser indenizado?

NÃO.

A Teoria do Desvio Produtivo, consoante ressalta Marcos Dessaune, parte da premissa de que “a sociedade pós-industrial [...] proporciona a seus membros um poder liberador: o consumo de um produto ou serviço de qualidade, produzido por um fornecedor especializado na atividade, tem a utilidade subjacente de tornar disponíveis o tempo e as competências que o consumidor necessitaria para produzi-lo [por si mesmo] para seu próprio uso” pois “o fornecimento de um produto ou serviço de qualidade ao consumidor tem o poder de liberar os recursos produtivos que ele utilizaria para produzi-lo pessoalmente” (DESSAUNE, Marcos V. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: uma visão geral. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo, v. 27, n. 119, p. 89-103, set./out. 2018).

Desse modo, seria possível identificar, no ordenamento jurídico nacional, uma verdadeira obrigação imposta aos fornecedores de garantir a otimização e o máximo aproveitamento dos recursos produtivos disponíveis na sociedade, entre eles, o tempo.

Tal obrigação teria por fundamento:

I) a vulnerabilidade do consumidor;

II) o princípio da reparação integral (Art. 6º, VI, do CDC);

III) a proteção contra práticas abusivas (art. 39, do CDC);

IV) o dever de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho imposto aos fornecedores de produtos e serviços (Art. 4º, II, “d”, do CDC); e

V) o dever de informar adequadamente e de agir sempre com boa-fé (Art. 6º, III e 51, IV, do CDC).

 

Na esteira da referida teoria, a tutela do tempo útil e seu máximo aproveitamento - valores subjacentes à função social da atividade produtiva - é imposta aos fornecedores com base nas disposições especiais e protetivas do Código de Defesa do Consumidor.

Assim, infere-se da origem, dos fundamentos e dos seus requisitos que a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor – como indica o próprio nome que lhe foi atribuído – é uma construção doutrinária aplicável no âmbito do direito do consumidor, notadamente em razão da situação de desigualdade e de vulnerabilidade que são as notas distintivas das relações de consumo.

Por essas razões, não é possível importar essa teoria para outros ramos, como no caso do Direito Civil.

O Direito do Consumidor possui autonomia e lógica de funcionamento próprias, máxime por regular relações jurídicas especiais compostas por um sujeito em situação de vulnerabilidade, o consumidor.

As construções doutrinárias erigidas com base neste ramo especial do Direito não podem ser livremente importadas, sem maiores reflexões, por outros ramos do ordenamento jurídico, notadamente pelo Direito Civil, sob pena de se instalar indevido sincretismo metodológico que deve ser evitado.

Ademais, , por envolver a adoção de um conceito jurídico indeterminado sobre o qual ainda não há nenhum acordo semântico - a denominada “perda do tempo útil” -, eventual aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor exige cautela e parcimônia, sob pena de causar indesejada insegurança jurídica.

Vale ressaltar, por fim, que “a tutela jurídica do tempo, principalmente na via indenizatória, jamais poderá ser subvertida por sua conversão em fonte fácil de renda e enriquecimento sem causa” (Cf. MAIA, Maurílio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo: quando o tempo é mais que dinheiro - é dignidade e liberdade. Revista de direito do consumidor, v. 23, n. 92, p. 170, mar./abr. 2014).

 

Em suma:

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor é predisposta a ser aplicada no âmbito do direito consumerista, notadamente em razão da situação de desigualdade e de vulnerabilidade que são características das relações de consumo, não se aplicando, portanto, a relações jurídicas não consumeristas regidas exclusivamente pelo Direito Civil.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.017.194-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/10/2022 (Info Especial 9).

 

 

 


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