quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Em caso de separação, é possível que o ex-cônjuge/companheiro(a) cobre pensão alimentícia em favor do animal de estimação adquirido durante a união?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Miriam e Tiago viveram em união estável durante cinco anos.

Depois desse período, chegou ao fim a relação.

Durante a união, eles adquiriram seis cachorros, que foram criados com muito amor e carinho.

Depois da separação em 2018, os cães ficaram sob os cuidados de Miriam, que ficou arcando sozinha com todas as despesas para a manutenção dos pets.

Ocorre que Miriam constituiu nova família e teve filhos, o que aumentou significativamente seus gastos.

Diante desse cenário, em 2022, Miriam ajuizou ação contra Tiago pedindo para que ele seja condenado a pagar:

a) metade das despesas mensais que ela teve com os pets desde o fim de união;

b) metade das despesas futuras que ela ainda terá com a manutenção dos pets.

 

Tiago contestou afirmando que não teria qualquer obrigação considerando que não é mais proprietário dos animais, tendo em vista que eles se encontram sob a responsabilidade de Miriam.

O juiz julgou o pedido parcialmente procedente afirmando que estão prescritas as parcelas de 2018 a 2020 (anteriores a 2 contados do ajuizamento da ação). Isso porque, para o magistrado, deve ser aplicado o prazo prescricional bienal previsto no art. 206, § 2º, do Código Civil:

Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.

(…)

 

Por outro lado, o juiz condenou Tiago a pagar a metade das despesas que Miriam teve nos anos de 2020 a 2022, além de determinar que o réu continue arcando com os custos para manutenção dos pets.

O Tribunal de Justiça confirmou a sentença.

O juiz e o TJ entenderam que, embora o Código Civil confira aos animais a natureza jurídica de bem móvel (semovente), esta compreensão, sobretudo em relação a animais de estimação, os quais se destinam ao preenchimento de necessidades humanas emocionais e afetivas, devem ser considerados seres senciente, com capacidade de manifestar sentimentos.

Assim, concluíram que, uma vez estabelecida a relação de afeto entre as partes com os animais, não se poderia admitir, sob o ponto de vista ético, o abandono como causa de extinção da propriedade e da inerente responsabilidade.

O réu interpôs recurso especial insistindo no argumento de que não pode ser obrigado a pagar essas despesas porque desde o fim da união estável, ocorrido há muitos anos, não é mais o dono dos animais de estimação, tendo sido a propriedade transmitida à autora pela simples tradição. Argumentou que os animais não são titulares de direito, possuindo a natureza jurídica de bens.

 

A sentença e o acórdão do TJ foram mantidos pelo STJ?

NÃO. Em uma caso parecido com o narrado acima, por apertada maioria (3x2), a 3ª Turma do STJ deu provimento ao recurso especial para julgar improcedentes os pedidos da autora.

Veja abaixo os argumentos do Ministro Marco Aurélio Bellizze, autor do voto-vista que foi o vencedor:

 

Relação regida pelo direito das coisas

A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas. Desse modo, a questão deve ser analisada de acordo com as regras previstas para a partilha segundo o regime de bens do casamento ou da união estável.

A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.

 

As despesas com o custeio dos animais cabem ao dono

As despesas com o custeio da subsistência dos animais são obrigações inerentes à condição de dono, como se dá, naturalmente com os bens em geral.

Enquanto vigente a união estável, é indiscutível que estas despesas podem e devem ser partilhadas entre os companheiros, na forma do art. 1.315 do Código Civil:

Art. 1.315. O condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita.

Parágrafo único. Presumem-se iguais as partes ideais dos condôminos.

 

Após a dissolução do casamento ou da união estável, deve-se definir quem ficará com os animais

Após a dissolução da união estável, esta obrigação de sustentar os pets pode ou não subsistir, a depender do que as partes voluntariamente estipularem.

Vale ressaltar que essa combinação não existe nenhuma formalidade, ainda que não seja proibido que isso seja consignado expressamente no formal de partilha dos bens.

 

Se ficar combinado que o animal ficará sob a responsabilidade de apenas um dos ex-companheiros, essa pessoa é quem deverá arcar com os custos de sustento do pet

Se, em virtude do fim da união, as partes, ainda que verbalmente ou até implicitamente, convencionarem, de comum acordo, que o animal de estimação ficará com um deles, este passará a ser seu único dono, que terá o bônus de desfrutar de sua companhia, arcando, por outro lado, sozinho, com as correlatas despesas.

Não se poderia conceber em tal hipótese – em que, extinta a união estável, com inequívoca definição a respeito de quem, doravante, passaria a ser o dono do animal de estimação –, pudesse o outro ex-companheiro, por exemplo, passado algum tempo e sem guardar nenhum vínculo de afetividade com o animal, reivindicar algum direito inerente à propriedade deste.

Da mesma forma, ao dono do pet, nesse mesmo contexto, não seria dada a possibilidade de reivindicar, em relação ao outro ex-companheiro (que não é mais dono), o cumprimento dos deveres para com o animal de estimação.

 

Se, no momento da separação, o pet ficou sob a responsabilidade de apenas um dos ex-conviventes, o vínculo com esse animal cessou (é diferente de um vínculo com um filho)

O fato de o animal de estimação ter sido adquirido na constância da união estável não pode representar a consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel entre os companheiros (com infindáveis litígios) ou entre um deles e o pet, sendo conferida às partes promoverem a acomodação da titularidade dos animais de estimação, da forma como melhor lhes for conveniente.

O único vínculo obrigacional de custear a subsistência de outro ser vivo, independentemente da ruptura da relação conjugal ou convivencial, estabelecido no ordenamento jurídico posto, decorre da relação de filiação, o que não se trata do caso concreto.

 

A autora ficou com a responsabilidade pelos pets

Após o fim da união estável, as partes litigantes definiram, deliberadamente, que os animais de estimação ficariam sob a posse e propriedade, única e exclusiva, da autora. Com isso, houve uma ruptura da relação réu para com os animais.

Independentemente da possível reprovação moral que se possa imputar ao demandado ficou evidente que a propriedade exclusiva dos cães ficou com a sua ex-companheira, despojando-se ele de todo e qualquer direito advindo da titularidade dos animais (e, por conseguinte, também dos correlatos deveres).

 

Animais não ficaram em mancomunhão

No caso concreto, após o fim da união estável, não houve, em relação aos animais de estimação, a manutenção do estado de mancomunhão (copropriedade) entre os ex-companheiros.

Por estado de mancomunhão, compreende-se o exercício simultâneo e conjunto da propriedade pelos ex-companheiros (ou ex-cônjuges) em relação aos bens do casal, enquanto não operada a partilha. Nesse interregno, caso um bem (integrante dessa unidade patrimonial fechada) esteja na posse exclusiva de um deles, é possível que o outro exija daquele a correspondente indenização pela privação da fruição da coisa,

abatida, proporcionalmente, das despesas que, de igual modo, a ambos competem. Esta compreensão, registra-se, é extraída da conjugação dos arts. 1.315 e 1.319 do Código Civil.

Sendo, portanto, incontroverso que os pets não se encontravam em estado de mancomunhão entre os ex-companheiros, não se pode permitir que a autora, única e exclusiva dona dos animais de estimação, que usufrui, sozinha, da companhia dos pets, pleiteie o pagamento das despesas ao ex-companheiro.

A imputação, ao demandado, da obrigação de arcar com as despesas dos animais (que não mais pertencem a ele), para que a demandante, exclusivamente, usufrua da companhia dos pets, não atende ao preceito de equidade.

A autora, assim que tomou para si a posse dos animais de estimação, caso não fosse a sua intenção de assumir, sozinha, a titularidade dos pets, deveria, imediatamente – sobretudo porque a providência se relaciona à subsistência dos animais – procurar o ex-companheiro para definir como se daria o exercício conjunto da propriedade dos cães, o que não foi feito.

 

Réu requereu ao juízo que os cães fossem encaminhados para adoção

O demandado, logo em sua primeira manifestação nos autos, requereu ao juízo que, caso a demandante não quisesse permanecer com os cães, fosse dada a adequada destinação aos animais já que, não nutria, há muito tempo, nenhum afeto pelos animais, não pretendendo assumir a obrigação de custear a subsistência deles.

O réu, despojado da propriedade dos animais, não pode ser condenado a custear os gastos com os animais porque não é mais o dono e tampouco exerce quaisquer dos direitos inerentes à propriedade.

O demandado não é proprietário dos animais, não usufrui da sua companhia nem pode dar a eles outra destinação (como encaminhá-los à adoção). Assim, a prevalecer essa lógica, o demandado somente se desobrigará de tal encargo, excluído o evento morte, se a proprietária, ao seu alvedrio, quiser vender ou doá-los. À proprietária é dada a possibilidade de dispor dos animais. Ao demandado que, desde o início, assumiu essa condição de disposição dos animais, não levada a efeito pela providência da demandante, impõe-se obrigação de custeio das despesas de subsistência.

Trata-se, a toda evidência, de uma obrigação potestativa imposta ao ex-companheiro, sem nenhum respaldo no ordenamento jurídico posto.

 

Questão regida pelo direito de propriedade

Com base em tais fundamentos, a questão posta, atinente à obrigação de custear as despesas de subsistência dos animais de estimação, tem regramento próprio e deve ser regido segundo o direito de propriedade (direito das coisas), com a repercussão no regime de bens regente do caso, atentando-se, em sua aplicação, ao afeto humano e à natureza particular dos animais, como seres dotados de sensibilidade

 

Em suma:

Não é possível aplicar por analogia as disposições acerca da pensão alimentícia, baseada na filiação e regida pelo Direito de Família, aos animais de estimação adquiridos durante união estável.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.944.228-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18/10/2022 (Info Especial 9).

 

Prazo prescricional não pode ser o do art. 206, § 2º, do CC

Pelas mesmas razões acima expostas, como não se trata de relação regida pelo Direito de Família, não se pode aplicar por analogia o prazo prescricional bienal previsto no art. 206, § 2º, do Código Civil, que cuida da pretensão afeta à pensão alimentícia:

Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.

(…)

 

Assim, o prazo prescricional aplicável, no caso concreto, é o do art. 206, § 3º, IV, do Código Civil, ou seja, o do enriquecimento sem causa do ex-companheiro e o correlato empobrecimento da demandante que, segundo alega, arcou sozinha com despesas dos animais de estimação, as quais, na sua ótica, também seriam de incumbência do demandado:

Art. 206 (...)

§ 3º Em três anos:

(...)

IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;

 

Enquanto perdurar o estado de mancomunhão, o coproprietário que assumir sozinho as despesas do bem pertencente em condomínio, tem o prazo de 3 anos, contados de cada parcela/mensalidade paga, para obter a reparação dos prejuízos gerados pelo locupletamento sem causa do outro proprietário (na proporção de metade).

Independentemente do modo como a pretensão é veiculada pela parte, este é o fundamento do pedido, consoante o ordenamento jurídico posto.

 

Conclusão quanto à discussão acerca da prescrição:

Encerrado o estado de mancomunhão, aplica-se o prazo prescricional trienal à pretensão de que o ex-companheiro arque com gastos de animais de estimação adquiridos durante a união estável.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.944.228-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. Acd. Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18/10/2022 (Info Especial 9).

 

Distinção com o REsp 1.173.167/SP

No REsp 1.173.167/SP, a 4ª Turma do STJ decidiu que, ao fim de um casamento ou união estável, é possível que o juiz reconheça o direito de visita a animal de estimação adquirido durante a constância do relacionamento:

Na dissolução de entidade familiar, é possível o reconhecimento do direito de visita a animal de estimação adquirido na constância da união, demonstrada a relação de afeto com o animal.

Na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.

STJ. 4ª Turma. REsp 1713167-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018 (Info 634).

 

O caso aqui tratado, contudo, é diferente do que o STJ julgou no REsp 1.173.167/SP. Isso porque aqui não se discutiu a respeito dos direitos sobre os pets, mas sim sobre os deveres de arcar com os custos de subsistência dos animais de estimação, adquiridos durante a união estável, após a sua dissolução.

Naquele julgado, controvertia-se a respeito da existência de direito de visita – instituto próprio de Direito de Família, exercido pelo pai biológico ou socioafetivo que ficou sem a guarda de seu filho – ao pet pelo ex-companheiro (o qual, ainda que desguarnecido da convivência diária, manteve seu laço de afetividade com o animal de estimação, bem como o estado de mancomunhão.

 

 


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