segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O prazo para recorrer contra a decisão de saneamento só começa após o juiz deliberar acerca de eventuais esclarecimentos/ajustes (art. 357, § 1º do CPC) ou após passar o prazo de 5 dias sem que a parte tenha pedido esclarecimentos/ajustes

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 26/02/2016, João ajuizou ação de indenização contra a imobiliária Alfa Beta argumentando que adquiriu um apartamento da ré, mas que ela teria demorado para entregar todos os documentos relativos ao imóvel.

O autor alegou que se tratava de relação de consumo e, por isso, pediu a inversão do ônus da prova, na forma do art. 6º, VIII, do CDC.

A imobiliária contestou afirmando que o atraso na entrega do imóvel ocorreu por culpa exclusiva do autor, que teve dificuldades na conclusão do financiamento bancário para quitação do apartamento.

 

Qual o momento de inversão do ônus da prova? Trata-se de regra de julgamento ou de regra de procedimento (de instrução)?

Trata-se de regra de instrução, devendo a decisão judicial que determiná-la ser proferida preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurar à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo a reabertura de oportunidade para manifestar-se nos autos. Nesse sentido:

A inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, é regra de instrução e não regra de julgamento, motivo pelo qual a decisão judicial que a determina deve ocorrer antes da etapa instrutória, ou quando proferida em momento posterior, garantir a parte a quem foi imposto o ônus a oportunidade de apresentar suas provas.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.286.273-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 08/06/2021 (Info 701).

 

Voltando ao caso hipotético:

O juiz proferiu decisão de saneamento deferindo a inversão do ônus da prova pedido pelo autor. Essa decisão interlocutória foi prolatada na forma do art. 357, III, do CPC:

Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:

(...)

III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373;

 

A decisão que inverteu o ônus da prova foi publicada no Diário de Justiça Eletrônico no dia 14/6/2016 (terça-feira), considerando-se publicada no dia 15/6/2016 (quarta-feira), nos termos do § 2º do art. 224 do CPC:

Art. 224. (...)

§ 2º Considera-se como data de publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico.

(...)

 

Petição pedindo ajustes e esclarecimentos

No prazo de 5 dias após essa decisão, a imobiliária ré apresentou petição na qual requereu ajustes e esclarecimentos da referida decisão alegando a não caracterização dos requisitos legais para a inversão do ônus da prova em seu desfavor. Essa petição foi formulada com base no art. 357, § 1º do CPC:

Art. 357 (...)

§ 1º Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.

 

Em decisão publicada em 30/6/2016, o juiz ratificou a decisão anteriormente tomada.

 

Agravo de instrumento

Em 27/07/2016, ou seja, 15 dias úteis depois da segunda decisão (30/06/2016), a vendedora interpôs agravo de instrumento questionando os fundamentos contidos na primeira decisão que inverteu o ônus da prova (e que foi ratificada na segunda).

O Desembargador, monocraticamente, não conheceu do agravo de instrumento afirmando que o recurso foi intempestivo.

Para o Desembargador, o prazo para o agravo de instrumento começou com a publicação da primeira decisão (15/6/2016), não tendo o pedido de ajustes/esclarecimentos influenciado no prazo para o recurso. O requerimento de ajustes/esclarecimentos possui o caráter de mero pedido de reconsideração.

Inconformada, a ré interpôs agravo regimental alegando que o prazo para o agravo de instrumento deve ser contado a partir da publicação da decisão que respondeu ao pleito de ajustes/esclarecimentos (30/06/2016). Argumentou que a decisão publicada em 30/06/2016 é a que efetivamente promoveu o saneamento do processo, de modo que o prazo para a interposição do agravo de instrumento deveria ser contado a partir dela.

O agravo regimental foi desprovido pelo TJ.

A ré interpôs recurso especial insistindo na tese de que a decisão de saneamento somente se torna estável após a realização dos esclarecimentos e ajustes previstos no art. 357, § 1º, do CPC.

 

O STJ concordou com os argumentos da incorporadora ré? Esse agravo de instrumento é tempestivo?

SIM.

Diante da possibilidade de interposição de agravo de instrumento contra a decisão de saneamento, surgem incertezas sobre o procedimento a ser perfilhado.

Se a parte aguarda o prazo para a decisão de aclaramento, a fim de alcançar a estabilidade da decisão, tornando-se definitiva, corre o risco de ver seu agravo de instrumento julgado intempestivo, pois dificilmente o pedido seria apreciado antes do término do prazo para interposição do recurso.

Por outro lado, se interpõe agravo de instrumento e simultaneamente requer esclarecimentos ou ajustes quanto, por exemplo, à distribuição do ônus da prova, sendo consequentemente proferida nova decisão, com acréscimo de argumentos ou alteração substancial do primeiro julgado, poderão surgir dúvidas quanto à necessidade de novo agravo de instrumento, ou em relação à prejudicialidade do primeiro recurso.

 

Requerimento do art. 357, § 1º do CPC não é um mero pedido de reconsideração

Frente a esse cenário, não se pode considerar o requerimento do art. 357, § 1º, do CPC/2015 como um mero pedido de reconsideração. O pedido de reconsideração é aquele dirigido ao magistrado, em que se pede o reexame de uma questão já resolvida, a fim de que lhe seja conferida outra solução. Em regra, a reconsideração do juiz decorrerá da própria sistemática do agravo, que permite ao magistrado o exercício da retratação (art. 1.018, § 1º, do CPC/2015). É pacífico o entendimento de que o pedido de reconsideração em nada modifica a contagem do prazo recursal.

No caso do art. 357, § 1º do CPC existe a previsão expressa de que a parte peça esclarecimentos ou solicite ajustes, não sendo um pedido de reconsideração sem respaldo legal.

 

A estabilidade da decisão de saneamento só é alcançada após o prazo de 5 dias

O CPC/2015 trouxe uma inovação no art. 357, § 1º, porque com a previsão desse dispositivo a estabilidade da decisão de saneamento somente ocorre após o decurso do prazo de 5 dias para manifestação das partes quanto a esclarecimentos ou ajustes.

Equiparar o pleito de esclarecimentos a um pedido de reconsideração é simplificar os efeitos previstos em lei a ponto de anulá-los, desconsiderando-se, por conseguinte, o princípio basilar da hermenêutica jurídica de que a lei não contém palavras inúteis ou desnecessárias (verba cum effectu sunt accipienda).

 

Podemos dizer, então, que requerimento do art. 357, § 1º do CPC interrompe o prazo recursal?

NÃO.

O efeito interruptivo é previsto nos arts. 1.026, caput, e 1.044, § 1º, do CPC/2015, apenas para dois recursos: embargos de declaração e embargos de divergência:

Art. 1.026. Os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a interposição de recurso.

 

Art. 1.044. No recurso de embargos de divergência, será observado o procedimento estabelecido no regimento interno do respectivo tribunal superior.

§ 1º A interposição de embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça interrompe o prazo para interposição de recurso extraordinário por qualquer das partes.

(...)

 

Não é possível estender esse efeito interruptivo para a solicitação de esclarecimento ou ajuste, sob pena de se criar, por analogia, um efeito que a lei somente conferiu a recursos específicos.

Vale ressaltar, ainda, que o pedido de esclarecimento ou ajuste não deve ser confundido, em seus efeitos, com os embargos de declaração, pois possui finalidade própria e exclusiva, qual seja, a integração das partes, de modo a contribuírem efetivamente para a plena organização do processo e a prolação de uma decisão coparticipativa, encerrando-se a fase de saneamento.

 

Pedido de esclarecimentos ou ajustes tem o propósito de assegurar a continuidade do caráter dialógico e cooperativo

A decisão de saneamento, proferida entre as fases postulatória e instrutória, possui como finalidade a organização do processo, a resolução de questões processuais pendentes, com a delimitação das matérias de fato e de direito relevantes, especificando-se os meios de prova admitidos e a distribuição do ônus probatório, e, caso necessário, designando audiência de instrução e julgamento.

O pedido de esclarecimentos ou ajustes tem o propósito de assegurar a continuidade do caráter dialógico e cooperativo no procedimento saneador, efetivando o amplo direito ao contraditório, a fim de obter, em tempo razoável, uma decisão justa e efetiva.

 

Decisão de saneamento somente estará aperfeiçoada após o decurso do prazo de 5 dias para manifestação das partes quanto a esclarecimentos ou ajustes ou após a decisão do juiz a respeito dessa solicitação do § 1º do art. 357

Com isso, compreende-se que a decisão de saneamento não está aperfeiçoada logo após sua prolação, pois permanece em construção, a depender do exercício do direito de petição.

Com efeito, se a decisão é colaborativa e há possibilidade de manifestação das partes, com probabilidade de alteração do teor deliberado, é sensato depreender que o saneamento ainda não foi concluído, razão pela qual encontra-se em estado de instabilidade.

Logo, existindo a possibilidade de manifestação das partes, somente após transcorrido o quinquídio legal ou proferida a decisão complementar é que fica concluído o procedimento do saneamento, iniciando o prazo para os interessados interporem o recurso de agravo de instrumento.

 

Em suma:

 

 


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