quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Diante de recurso de apelação com base no art. 593, III, d, do CPP, é imprescindível que o Tribunal avalie a prova dos autos a fim perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados

Como funciona a apelação contra a decisão do Tribunal do Júri?

O Júri é uma instituição voltada a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal. Como forma de valorizar essa participação, a Constituição consagrou o princípio da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF/88).

Em decorrência desse princípio, o recurso contra a decisão de mérito dos jurados é a apelação prevista no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos).

Se essa apelação for provida pelo TJ (ou TRF), o réu será submetido – uma única vez – a novo julgamento pelos jurados.

Assim, o Tribunal de 2ª instância (togado) só poderá dar provimento à apelação com base neste fundamento uma única vez.

Explicando melhor: imagine que o réu foi condenado pelo júri. A defesa interpôs apelação. O TJ determinou que seja feito um novo júri. Se os jurados (que serão outros sorteados) decidirem novamente que o réu deverá ser condenado, ainda que a defesa recorra, o Tribunal não mais poderá dar provimento à apelação sob o fundamento de que a decisão do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos.

Dito de outro modo, o argumento do Tribunal de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos só pode ser utilizado uma única vez.

Nesse sentido, veja o que diz o § 3º do art. 593:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

(...)

§ 3º Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

 

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

João e Antônio tiveram um desentendimento dentro de uma casa noturna.

João já saía do estabelecimento quando foi chamado por Antônio para uma briga, em via pública.

João retornou e efetuou um disparo de arma de fogo para o alto, no intuito de intimidar Antônio, que ia em sua direção.

Antônio, contudo, prosseguiu em direção ao seu rival.

João disparou duas vezes contra Antônio, atingindo-lhe a perna e o abdômen, o que o fez cair no chão, ainda com vida.

Ato contínuo, mesmo depois de Antônio estar caído no chão, João efetuou outros dois disparos, os quais atingiram o crânio da vítima, causando-lhe a morte.

Após a regular instrução do feito, o réu foi pronunciado para ser julgado pelo Tribunal do Júri, como incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos II, III e IV, do Código Penal (homicídio qualificado).

O advogado suscitou em plenário as teses da legítima defesa e do eventual excesso culposo.

Após os debates, foram formulados os seguintes quesitos aos jurados:

Quesito: no dia xxx, às yyy, a vítima Antônio foi atingida com disparos de arma de fogo, sofrendo as lesões descritas no auto de necropsia, que causaram sua morte? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o réu João efetuou os disparos de arma de fogo que atingiram a vítima? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o réu João, ao assim agir, quis matar a vítima? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o jurado absolve o réu João? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.

Quesito: o réu João, ao repelir injusta agressão, usou moderadamente dos meios necessários para tanto? O júri respondeu SIM com mais de três votos. (obs: isso significa que os jurados reconheceram a legítima defesa)

Quesito: o réu João, ao se exceder, agiu dolosamente? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.

 

Ao fim do julgamento pelo Tribunal do Júri, os jurados responderam que o réu agiu em legítima defesa, mas reconheceram que houve excesso (art. 23, parágrafo único, do CP):

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Excesso punível

Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

 

Conforme se vê pela redação do parágrafo único, o excesso pode ser doloso ou culposo.

No caso concreto, os jurados responderam que o excesso foi culposo.

 

Apelação

O Ministério Público não concordou com o resultado e interpôs apelação, alegando que os jurados reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem qualquer respaldo nos autos, eis que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido suficiente para deixá-la estirada ao solo, cessando a agressão. Logo, para o Parquet, os demais disparos foram proferidos com intenção de matar, tendo havido, portanto, excesso doloso.

O Tribunal de Justiça negou provimento ao apelo, argumentando que os “jurados julgam por íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar suas decisões. Deste modo, podem utilizar, para seus convencimentos, quaisquer provas contidas nos autos, ainda que não sejam as mais verossímeis”.

 

Recurso especial

O Ministério Público interpôs recurso especial alegando que o Tribunal de Justiça não apontou qualquer prova produzida nos autos que eventualmente amparasse o que foi decidido pelo Conselho de Sentença.

 

A fundamentação utilizada pelo Tribunal de Justiça foi adequada e suficiente para negar provimento ao recurso do Ministério Público?

NÃO.

Não há dúvida de que os jurados atuantes no Tribunal do júri julgam por íntima convicção, pois não precisam justificar as razões pelas quais responderam de um modo ou de outro os quesitos formulados.

Todavia, essa premissa não impede que o Tribunal de Justiça exerça controle sobre a decisão dos jurados, sob pena de tornar letra morta o contido no art. 593, III, “d”, do CPP, que expressamente estipula cabimento de apelação contra decisão de jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Nesse sentido, é indispensável que o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação interposta, avalie a prova dos autos, com fim de perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados.

Trata-se de providência objetiva de cotejo do veredicto com a prova dos autos, sendo prescindível qualquer ingresso na mente dos jurados.

Vale ressaltar que, havendo duas versões jurídicas sobre os fatos, ambas amparadas no acervo probatório, deve ser preservada a decisão dos jurados, em atenção à soberania dos veredictos. No entanto, se não houver nenhuma prova que ampare a decisão dos jurados, o júri deve ser anulado.

No caso concreto, o apelo da acusação fez referência expressa a elementos do acervo probatório dos autos para concluir que houve excesso doloso, razão pela qual a decisão dos jurados seria manifestamente contrária à prova dos autos. Não é o caso de absolvição por clemência. Os jurados não absolveram o interessado, pois responderam negativamente ao quesito genérico. Houve, sim, reconhecimento de legítima defesa e o reconhecimento de seu excesso. O que se discute é se esse excesso foi culposo ou doloso.

Segundo o MP, os jurados reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem nenhum respaldo nos autos. Considerou-se que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido suficiente para deixá-la estirada ao solo na posição decúbito ventral, cessando a agressão. Quanto aos demais disparos, foram justificados pelo animus necandi. Os depoimentos de testemunhas presenciais, bem como fotografias e laudo pericial afastaram cabalmente a tese do réu apresentada aos jurados, segundo a qual apenas efetuou outros disparos porque a vítima caiu segurando suas pernas.

Apesar disso, o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação, não citou nenhuma prova para afastar a alegação do MP de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos. Em outras palavras, o TJ precisava ter demonstrado que o veredicto dos jurados possui algum mínimo embasamento na prova dos autos. Não é suficiente que o TJ diga que os jurados julgam por íntima convicção já que a absolvição não foi por clemência.

Por essa razão, o STJ determinou que o TJ julgue novamente o recurso e, com amparo nas provas produzida nos autos, diga se o a decisão dos jurados é, ou não, manifestamente contrária à prova dos autos.

 

Em suma:


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