sábado, 25 de novembro de 2023

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João celebrou, com a incorporadora, contrato de compra e venda de um imóvel, com cláusula de alienação fiduciária em garantia.

O ajuste previa o pagamento em 120 prestações mensais.

Após 60 prestações pagas, João ajuizou ação de resolução do contrato contra a incorporadora alegando que não tinha mais condições de continuar pagando as parcelas restantes.

Na ação, o autor pediu a dissolução do vínculo obrigacional, afirmando que entregaria o imóvel e que, como consequência, queria receber de volta 90% das prestações pagas. Afirmou que o vendedor poderia reter 10% dos valores já recebidos a título de despesas que eventualmente tenha sido, nos termos do art. 53 do CDC:

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

 

A alienante alegou que o pedido do autor não poderia ser acolhido e que, no presente caso, o que aconteceu foi uma quebra antecipada do contrato por parte do comprador.

De acordo com a quebra antecipada do contrato (chamada de antecipatory breach, na common law), há inadimplemento, mesmo antes do vencimento, quando o devedor pratica atos abertamente contrários ao cumprimento do contrato.

Tendo havido inadimplemento por parte do comprador, é possível o desfazimento do contrato, no entanto, a devolução dos valores já pagos não se dará na forma do art. 53 do CDC, mas sim segundo o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

Em suma, a construtora alegou que houve um contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária. Logo, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

 

O juiz acolheu os argumentos da alienante?

NÃO.

O juiz disse que, no caso concreto, houve uma falta de cuidado que mudou todo o cenário: o contrato de compra e venda não foi levado a registro no cartório do registro de imóveis.

No caso de propriedade fiduciária de bem imóvel, regida pela Lei nº 9.514/97, a garantia somente se constitui com o registro do contrato que lhe serve de título no registro imobiliário (“cartório de registro de imóveis”) do local onde se situa o bem. Nesse sentido, veja o que diz o art. 23 da Lei nº 9.514/97:

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

 

O registro possui natureza constitutiva da propriedade fiduciária, assim como ocorre em relação aos demais direitos reais sobre imóveis

Dessa maneira, sem o registro do contrato no competente Registro de Imóveis, há simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor.

Em suma, para o juiz, a ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste entre os contratantes e, portanto, impede o credor fiduciário de promover a alienação extrajudicial do bem.

 

O STJ concordou com a conclusão do magistrado? A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis retira a validade do ajuste entre os contratantes?

NÃO.

De fato, o registro do contrato no competente Registro de Imóveis é imprescindível à constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº 9.514/97:

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

 

Nesse ponto, o magistrado está correto.

Ocorre que a ausência do registro do contrato não retira a validade e a eficácia das cláusulas contratuais que foram livremente ajustadas entre as partes. Uma dessas cláusulas é justamente a que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.

O registro é direito potestativo do credor, a fim de que se concretize a transferência da propriedade resolúvel para seu nome, mediante o pagamento do tributo e custas devidos. Pode ser feita a qualquer momento durante a vigência da relação contratual.

Por se tratar de contrato bilateral, com a assunção de obrigações recíprocas, deve ser reconhecido o direito de o credor fiduciário utilizar os meios contratuais de execução da garantia em caso de inadimplência do devedor fiduciante, mesmo na hipótese em que a avença não é levada a registro.

Vale ressaltar que o reconhecimento da validade e da eficácia do contrato de alienação fiduciária, mesmo sem o registro no Ofício de Registro de Imóveis, opera-se em favor de ambas as partes da relação contratual. É uma garantia para ambas as partes. Assim, mesmo na ausência de registro, o devedor fiduciante tem o direito de não ter o imóvel objeto da garantia alienado fora das hipóteses legalmente admitidas e de obter o termo de quitação após o pagamento integral da dívida e de seus encargos, com vistas à consolidação da propriedade definitiva do imóvel. Se assim não fosse, o credor fiduciário poderia requerer o distrato mesmo sem o inadimplemento do devedor fiduciário, gerando enorme insegurança jurídica para este último.

 

Isso significa que a alienante poderá fazer a alienação extrajudicial do imóvel mesmo sem o registro do contrato?

NÃO. Não significa isso. O registro, como vimos acima, é desnecessário para conferir eficácia ao contrato de alienação fiduciária entre devedor fiduciante e credor fiduciário. Assim, mesmo sem o registro, o contrato firmado entre João e a incorporadora é válido e eficaz.

No entanto, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97:

Art. 26. Vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente, a satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de intimação.

(...)

 

Voltando, portanto, para o caso concreto:

O juiz deveria ter julgado improcedente o pedido de João.

Mesmo sem registro, as cláusulas contratuais são válidas.

A ausência de registro do contrato não confere ao devedor fiduciante (no caso, João) o direito de promover a rescisão da avença por meio diverso daquele contratualmente previsto.

Admitir a rescisão do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel com base nas normas de proteção ao direito do consumidor, ou seja, com a devolução da maior parte dos valores pagos e a retenção de um pequeno percentual a título de ressarcimento de eventuais despesas, seria desvirtuar por completo o instituto, que certamente cairia em desuso, em prejuízo dos próprios consumidores de imóveis, que teriam maior dificuldade de acesso ao crédito e juros mais elevados.

Vale ressaltar, contudo, que, para a incorporadora promover a alienação extrajudicial do bem, é indispensável que ela supra a sua omissão e faça o registro do contrato no registro de imóveis. Somente com essa providência ela poderá fazer a constituição do devedor em mora para depois alienar extrajudicialmente o imóvel.

 

Em suma:

A ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no Registro de Imóveis não retira a validade do ajuste entre os contratantes.  Ainda que o registro do contrato no competente Registro de Imóveis seja imprescindível à constituição da propriedade fiduciária de coisa imóvel, nos termos do art. 23 da Lei nº 9.514/97, sua ausência não retira a validade e a eficácia dos termos livre e previamente ajustados entre os contratantes, inclusive da cláusula que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência.

Vale ressaltar, contudo, que, para dar início à alienação extrajudicial do imóvel é, sim, imprescindível a efetivação do registro do contrato. Isso porque a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o Oficial de Registro de Imóveis, nos moldes do art. 26 da Lei nº 9.514/97.

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.866.844-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/9/2023 (Info 789).

 

Outras informações extraídas do voto-vista da Min. Isabel Galloti:

• A ausência do registro do contrato de alienação fiduciária no competente Registro de Imóveis não lhe retira a eficácia, ao menos entre os contratantes, servindo tal providência apenas para que a avença produza efeitos perante terceiros.

• Ao não promover o registro imobiliário do contrato, o credor assume o risco, por exemplo, de o devedor alienar o bem a terceiro, ignorante do contrato, e ao qual o pacto não poderá ser oposto, precisamente em razão da falta de registro.

• A propriedade de bem imóvel somente se transfere, entre vivos, mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Nem por isso se pode dizer que a validade e a eficácia do negócio em tais hipóteses fica condicionada ao registro. O registro serve apenas para que o direito possa surtir efeitos perante terceiros.

A ausência de registro do contrato de promessa de compra e venda de imóvel, ao menos em relação aos contratantes, não lhe retira as características que lhe são inerentes, a exemplo da impossibilidade de retratação. O registro serve apenas ao propósito de conferir direito real oponível a terceiros (art. 25 da Lei nº 6.766/79).

• Não se pretende afastar a aplicação do art. 23 da Lei nº 9.517/97. Referido dispositivo, entretanto, não fixa o prazo para o registro do contrato de alienação fiduciária. Prevê que: “(...) constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título”. Ou seja: o registro é necessário para a consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária, apesar de não ser exigência para que o contrato de alienação fiduciária tenha validade e eficácia entre as partes.

• Isso significa que o registro do contrato de alienação fiduciária é imprescindível para o início do procedimento que poderá levar à alienação extrajudicial do imóvel caso não haja purgação da mora. Na ausência do registro, como no caso dos autos, caberá ao credor fiduciário registrar o contrato antes de dar início ao procedimento de alienação extrajudicial.

• Portanto, depreende-se que:

a) a ausência de registro do contrato de alienação fiduciária não confere ao recorrido o direito de promover resilição, resolução ou rescisão por meio diverso daquele contratado; e

b) configurado o inadimplemento do recorrido, o credor fiduciário, ora recorrente, após a efetivação do registro, promoverá o procedimento de execução extrajudicial perante o Registro de Imóveis, o qual, caso não haja a tempestiva purgação da mora, culminará com a alienação do bem em leilão e entrega ao recorrido do valor remanescente, abatidos os valores da dívida e as demais despesas comprovadas, conforme previsto nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.

 

DOD Plus – julgados correlatos

O entendimento acima foi proferido pela 2ª Seção do STJ em embargos de divergência. Com isso, ficou parcialmente superado o julgado abaixo. Faça essa anotação em seus materiais de estudo:

No regime especial da Lei 9.514/97, o registro do contrato tem natureza constitutiva, sem o qual a propriedade fiduciária e a garantia dela decorrente não se perfazem.

Na ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no competente Registro de Imóveis, como determina o art. 23 da Lei nº 9.514/97, não é exigível do adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só então receber eventuais diferenças do vendedor.

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

STJ. 3ª Turma. REsp 1835598-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09/02/2021 (Info 685).


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