terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Se o médico não informa adequadamente sobre os riscos da cirurgia e não obtém do paciente o seu consentimento informado, ele deverá indenizá-lo



Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi vítima de um acidente de carro no qual sofreu traumatismo craniano, ficando com algumas sequelas neurológicas (tremores no braço direito).
Cerca de um ano depois do acidente, ele procurou o setor de neurologia de um dos melhores hospitais do país.
O neurocirurgião que o atendeu recomendou a realização de uma cirurgia na cabeça, chamada de talamotomia, a fim de melhorar a função cerebral do paciente.
João foi submetido à cirurgia. No entanto, em vez de melhorar, ele piorou bastante, perdendo a capacidade de andar.
Diante disso, foi ajuizada ação de indenização por danos morais contra o hospital e o médico.
O principal fundamento da ação não foi eventual erro médico, mas sim ausência de informação.
O autor comprovou que o médico não explicou que a cirurgia que seria realizada era extremamente arriscada e que havia uma alta probabilidade de apresentar sequelas, como de fato ocorreu.
Ao contrário, o médico teria dito que era uma intervenção simples, com anestesia local e duração máxima de 2 horas.

Diante desse cenário, há responsabilidade civil no presente caso?
SIM. Vamos com calma.

Relação jurídica médico-paciente
A natureza jurídica da relação instaurada entre médico e paciente pode ser considerada como uma “locação de serviços sui generis”.
O profissional, além da obrigação de prestar os serviços médicos, tem também diversos deveres extrapatrimoniais considerados essenciais para a natureza deste contrato.
É o que explica Gustavo Tepedino: A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. In: Revista jurídica. São Paulo, v. 51, n. 311, set. 2003; p. 18-43, p. 19.

Dever de informação
Um desses deveres do médico é justamente o dever de informação.
Assim, o profissional deve explicar ao paciente (ou seu representante legal), de forma muito clara, quais são os riscos do tratamento, as vantagens e desvantagens, as técnicas que serão empregadas, os prognósticos (“previsões”) e todas as demais informações que sejam necessárias e úteis.
Esse dever de informação existe, dentre outras razões, para permitir que o paciente (ou seu representante legal) possa decidir livremente se deseja ou não executar aquele procedimento.
Segundo o Código de Ética Médica (Resolução do CFM nº 1.931, de 17.9.2009), é dever do médico respeitar essa decisão do paciente:
É vedado ao médico
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Dispensa do dever de informação se puder causar danos ao paciente
Excepcionalmente, o médico pode deixar de dar algumas informações ao paciente nos casos em que o fornecimento dessa informação possa gerar algum dano, normalmente em seu estado psíquico. Veja o que diz o Código de Ética Médica:
É vedado ao médico
Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Vale ressaltar, no entanto, que, nestes casos, o médico continua sendo obrigado a fornecer tais informações ao representante legal do paciente.
Assim, podemos dizer que:
O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).

Livre consentimento informado
O direito à informação do paciente existe, como já dito, para que ele possa ter todos os subsídios necessários para decidir se irá ou não se submeter àquele tratamento.
A isso se dá o nome de livre consentimento informado.
O direito à informação confere ao consumidor uma escolha consciente, permitindo que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas. Trata-se do chamado “consentimento informado ou vontade qualificada”.
O consentimento informado é uma decorrência da:
• dignidade da pessoa humana; e
• do princípio da autonomia privada.

Assim, pode-se dizer que o consentimento informado é uma manifestação do direito fundamental de autodeterminação do paciente.

O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais, é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).

Fontes do direito à informação e do consentimento informado
O direito do paciente à informação e a necessidade de seu livre consentimento informado decorrem:
• da Constituição Federal (em especial da dignidade da pessoa humana);
• de documentos internacionais, como é o caso da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, da UNESCO, cujo artigo 6º preconiza:
Artigo 6º Consentimento
1. Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada.
Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.

• do Código de Defesa do Consumidor, que impõe ao fornecedor de bens e serviços o dever de informar com clareza, lealdade e exatidão, nos termos do art. 6º, III:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012)

• do Código de Ética Médica.

De quem é o ônus de provar o consentimento informado?
Do médico ou do hospital. Para a doutrina, é do médico ou do hospital o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de esclarecer e obter o consentimento informado do paciente.
Assim, havendo dúvida, deve-se entender que o médico não deu as informações necessárias ao paciente.
Vale ressaltar que isso não significa que a responsabilidade dos médicos seja objetiva. Não o é. Em regra, a responsabilidade dos médicos é subjetiva, nos termos do art. 14, § 4º do CDC:
Art. 14 (...)
§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital, orientado pelo princípio da colaboração processual, em que cada parte deve contribuir com os elementos probatórios que mais facilmente lhe possam ser exigidos.
A responsabilidade subjetiva do médico (art. 14, §4º, do CDC) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações técnicas aplicáveis.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).

O consentimento informado deve ser feito por escrito?
Não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma norma que exija que o médico ou hospital recolha o consentimento escrito do paciente, expresso em um documento assinado.
Apesar disso, a doutrina recomenda, de modo muito enfático, que o médico tome essa providência. Isso porque, como visto acima, é do médico o ônus de provar o consentimento informado.

Consentimento específico
Além de escrito, é importante que o consentimento do paciente seja específico.
Um consentimento genérico (chamado de blanket consent) não é suficiente, devendo ser feito de forma específica para aquele tratamento claramente individualizado.

Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).

No exemplo dado, ficou demonstrado que não houve erro médico. Mesmo assim, será devida a indenização? A indenização será devida pelo simples fato de não ter sido respeitado o dever de informação?
SIM.
O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se.
A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento que, ao final, lhe causou danos que poderiam não ter sido causados caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/08/2018 (Info 632).



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