segunda-feira, 19 de junho de 2023

A norma do art. 36, III, “b”, da Lei 8.112/90 (remoção por motivo de doença em pessoa da família) não pode ser aplicada de maneira subsidiária aos membros do MPU

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina, Procuradora da República, possui um filho, de 5 anos de idade, com autismo.

Regina está lotada em um Município do interior do Estado. Ela requereu sua remoção para a capital, para que seu filho possa ter atendimento adequado em um centro de referência em autismo.

O pedido da requerente foi fundamentado no art. 36, parágrafo único, III, “b”, da Lei nº 8.112/90:

Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.

(...)

Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção:

(...)

III -  a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração:

(...)

b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à comprovação por junta médica oficial;

(...)

 

Foi realizada perícia médica oficial que constatou o motivo alegado. Apesar disso, o pedido foi negado administrativamente.

Inconformada, Regina ingressou com ação de obrigação de fazer contra a União pedindo a sua remoção, por motivo de saúde de seu filho, para um ofício do Ministério Público na capital do Estado.

Em 2016, o juízo federal deferiu a liminar determinando a remoção de Regina.

Posteriormente, o magistrado julgou procedente o pedido e a sentença foi confirmada pelo TRF.

A União interpôs recurso especial alegando que:

- a Lei Complementar nº 75/93 é o diploma normativo que rege especificamente os membros do Ministério Público da União;

- a LC 75/93 disciplinou a licença por motivo de doença em pessoa da família, mas não previu a possibilidade de licença por motivo de doença em pessoa da família;

- a LC 75/93 é mais específica e foi editada três anos depois da Lei nº 8.112/93, razão pela qual ela deve ser aplicada no caso concreto;

- logo, conclui-se que não se aplica o art. 36, III, “b”, da Lei nº 8.112/90 aos membros dos Ministério Público da União e a LC 75/93 não ampara a pretensão da autora.

 

O STJ concordou com os argumentos da União?

SIM.

O art. 287, caput, da LC 75/93 permite a aplicação subsidiária da Lei nº 8.112/90 aos membros do Ministério Público da União nos seguintes termos:

Art. 287. Aplicam-se subsidiariamente aos membros do Ministério Público da União as disposições gerais referentes aos servidores públicos, respeitadas, quando for o caso, as normas especiais contidas nesta lei complementar.

(...)

 

O STJ, contudo, interpretando esse art. 287, afirma que a aplicação do Estatuto dos Servidores Públicos Federais para os membros do Ministério Público da União somente pode ocorrer quando a legislação específica da carreira não prever instituto próprio para solucionar a questão jurídica controvertida.

No caso concreto, como argumentou a União, a LC 75/93 poderia ter criado o direito à remoção em caso de doença de pessoa da família, no entanto, optou por conceder apenas a licença nessas hipóteses. Logo, houve uma escolha da LC 75/93, devendo prevalecer tal previsão especial.

Além disso, o número de agentes de poder que gozam de inamovibilidade (a exemplo dos membros do MP e os magistrados) é sempre inferior ao de servidores que compõem as carreiras de apoio, fora o fato de que aqueles necessariamente desempenham as atribuições de chefia e gestão. Assim, os impactos de uma remoção de ofício em relação aos promotores, procuradores e magistrados são muito maiores em termos logísticos do que aqueles gerados pela remoção de ofício de um servidor, a justificar a diferença de tratamento legal: para os primeiros reservou-se o direito do gozo de licença; para os segundos o direito à remoção em si.

Se se entender que o art. 36 da Lei nº 8.112/90 pode ser aplicado subsidiariamente, nos casos em que o(a) Procurador(a) tiver como cônjuge servidor e esse for removido de ofício (art. 36, III, “a”), o primeiro também terá direito à remoção, ampliando-se bastante as hipóteses de remoção de membro de poder, em detrimento da organização do serviço público e da criteriosa lista de antiguidade.

Assim, é possível concluir que a omissão na lei própria do MPU a respeito da remoção para tratamento de saúde de familiar não se tratou de omissão atécnica do legislador, mas sim de caso de silêncio eloquente/opção nesse aspecto.

 

Em suma:

 

Como Regina foi sucumbente, significa que ela teve que voltar para o ofício no interior do Estado? A remoção que havia sido determinada nas instâncias inferiores foi revertida (desfeita)?

NÃO.

Segundo restou demonstrado nos autos pelas instâncias ordinárias:

a) o infante deve permanecer no local onde iniciou as terapias relacionadas ao autismo e manter seu convívio familiar, social, terapêutico e escolar, o mais estruturado possível, sem alterações significativas;

b) quaisquer variações no ambiente de vivência do menor, mesmo que mínimas, reverberam sobejamente na progressão/regressão da doença, dada a sua sensibilidade psicológica;

c) a cidade de lotação originária da autora não dispõe de quadro de profissionais que pudessem atender às necessidades da criança;

d) ficou evidenciada a extrema importância da presença da mãe junto à criança para que essa apresente desenvolvimento saudável, bem como os impactos negativos, com comprometimento de sintomas e do processo de desenvolvimento, em caso de ausência da genitora; e

e) poderia haver prejuízos à criança em caso de mudança de domicílio, com afastamento de outros familiares, pois o filho da recorrida estaria saindo do “seu mundo autista, para ele intocável e só dele, para algo diferente e estranho onde o processo de socialização será afetado de forma brutal, acarretando prejuízo na possível melhora de seus sintomas e um prognóstico reservado”.

 

Assim, todo esse contexto demonstra que, a despeito de a tese jurídica defendida pela União ser a correta, no caso concreto, a restauração da estrita legalidade, com a mudança da autora e do filho (pessoa com deficiência) para a lotação de origem ocasionaria muito mais danos sociais que a manutenção da situação consolidada (teoria do fato consumado/consolidado). Logo, o Tribunal entendeu que a situação deveria ser mantida com base na aplicação da teoria do fato consumado/consolidado.

O STJ entende que, em demandas envolvendo interesse de criança, como no caso, a solução da controvérsia deve sempre observar o princípio do melhor interesse do menor, introduzido em nosso sistema jurídico como corolário da doutrina da proteção integral, consagrada pelo art. 227 da Constituição Federal, o qual deve orientar a atuação tanto do legislador quanto do aplicador da norma jurídica, vinculando-se o ordenamento infraconstitucional aos seus contornos (STJ. 3ª Turma. HC 776.461/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 29/11/2022).

Mas o STJ várias vezes negou a aplicação da teoria do fato consumado... Sim. É verdade. Contudo, conforme bem observou o Ministro Relator:

“(...) embora não desconheça que, em regra, o STJ não admita a aplicação da teoria fato consumado/consolidado, diante das já mencionadas peculiaridades, tenho que o caso em análise se insere na exceção à regra, e reclama o acolhimento daquela orientação.”

 

Dispositivo do acórdão do recurso especial

Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso, apenas para reconhecer que a remoção prevista no art. 36, III, da Lei nº 8.112/90 não se aplica aos membros do Ministério Público da União e para afastar a condenação da União em honorários advocatícios, mantendo-se, porém, os efeitos da remoção garantida à recorrida, em decorrência da aplicação da teoria do fato consumado.

 

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