quinta-feira, 15 de junho de 2023

Havendo juízo especializado para apurar e julgar crimes praticados contra criança e adolescente, é este o competente independentemente do tipo de crime

Imagine a seguinte situação hipotética:

João praticou roubo contra as adolescentes Suzana e Kely, de 17 e 15 anos, respectivamente.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João na 3ª Vara Criminal da Comarca de Salvador/BA.

O juiz condenou o réu.

João interpôs apelação alegando a nulidade da condenação pela incompetência do juízo. Ele argumentou que as duas vítimas eram adolescentes, motivo pelo qual o feito deveria ter sido distribuído para uma das varas especializadas em crimes praticados contra a criança e adolescente, na forma do art. 85 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça da Bahia.

O Ministério Público argumentou que não haveria nulidade por incompetência do juízo, tendo em vista que o bem tutelado pelo art. 157 do CP não é o “menor” (criança ou adolescente), mas sim o patrimônio. Segundo o Parquet, “o deslocamento da competência criminal para a justiça especial, além de visar proteger a vítima vulnerável, aplica-se primordialmente aos delitos de natureza sexual”.

O TJ/BA negou provimento ao recurso. Segundo o acórdão:

• a incompetência foi suscitada apenas nas razões recursais, tendo havido preclusão;

• a competência das Varas dos Feitos Criminais contra Criança e Adolescente não é absoluta, haja vista que o objetivo da previsão legal é garantir um melhor atendimento e acolhimento para as vítimas menores, e não beneficiar seus algozes.

 

Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus dirigido ao STJ insistindo na tese da nulidade da condenação.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM.

 

Os Tribunais de Justiça podem dispor sobre a especialização de varas, pois se trata de matéria que se insere no âmbito da organização Judiciária dos Tribunais

O art. 96, inciso I, “a” e “d”, e inciso II, alínea “d”, da Constituição Federal, preconizam:

Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

(...)

d) propor a criação de novas varas judiciárias;

(...)

II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:

(...)

d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;

 

Com base nesses dispositivos, o STF firmou o entendimento de que o Poder Judiciário pode dispor sobre a especialização de varas, pois se trata de matéria que se insere no âmbito da organização Judiciária dos Tribunais.

 

Lei nº 13.431/2017 afirma que poderão ser criadas varas para apurar crimes contra a criança e o adolescente

A Lei federal nº 13.431/2017 estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. O art. 23 dessa Lei preceitua que:

Art. 23. Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente.

Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins.

 

Essas varas apuram crimes contra criança e adolescente mesmo que não sejam delitos contra a dignidade sexual

O caso concreto não envolve delito contra a dignidade sexual, tendo ocorrido um roubo praticado contra duas adolescentes.

Nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, o STJ já pacificou o entendimento no sentido de que “somente nas comarcas em que não houver varas especializadas em violência contra crianças e adolescentes ou juizados/varas de violência doméstica é que poderá a ação tramitar na vara criminal comum” (EAREsp 2.099.532/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 30/11/2022). Em outras palavras: havendo juízo especializado, esse deve prevalecer sobre os demais.

Esse mesmo entendimento deve ser estendido outros crimes, como na hipótese em análise.

O art. 85 do Regimento Interno do TJ/BA atribui às Varas dos Feitos Criminais praticados contra Criança e Adolescente a competência para processar e julgar, indistintamente, “os crimes e as contravenções penais, cujas vítimas sejam crianças e adolescentes”.

Como há vara criminal especializada para apurar e julgar crimes praticados contra criança e adolescente, este é o juízo competente para julgar a ação penal, sendo irrelevante o delito.

 

Todos os atos praticados foram anulados (ex: oitivas das testemunhas, vítimas, interrogatório)?

NÃO. Considerando a finalidade da norma (Lei nº 13.431/2017), que é garantir os direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, o STJ entendeu que era caso de se aplicar ao caso da teoria do juízo aparente, segundo a qual “o reconhecimento da incompetência do juízo que era aparentemente competente não enseja, de imediato, a nulidade dos atos processuais já praticados no processo, [...], pois tais atos podem ser ratificados ou não pelo Juízo que vier a ser reconhecido como competente para processar e julgar o feito” (RHC 116.059/PE, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 4/10/2019).

Diante disso, a 5ª Turma do STJ reconheceu a incompetência do juízo da 3ª Vara Criminal de Salvador/BA e determinou a remessa dos autos para a vara especializada, que deverá considerar a possibilidade de aproveitamento dos atos processuais já praticados (inclusive decisórios), caso sejam ratificados pelo juízo competente.

A jurisprudência do STJ se posicionou no sentido de que, mesmo para os casos de incompetência absoluta no processo penal, somente os atos decisórios são anulados, sendo possível, por conseguinte, a ratificação dos atos não-decisórios. O próprio STF admite a possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive dos atos decisórios.

 

Em suma:

 

Print Friendly and PDF