segunda-feira, 5 de junho de 2023

O delito de registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B do CP) possui a natureza de ação penal pública incondicionada

Imagine a seguinte situação adaptada:

Ricardo instalou uma câmera e gravou a prática de ato sexual entre ele e sua namorada Letícia, sem o consentimento dela.

Letícia tomou conhecimento dessa gravação em 20/10/2019, porém registrou boletim de ocorrência 10 meses depois da descoberta, em 21/08/2020.

O Ministério Público ofereceu denúncia em face de Ricardo pela prática do crime tipificado pelo art. 216-B, do Código Penal:

CAPÍTULO I-A

DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL

(Incluído pela Lei nº 13.772, de 2018)

Registro não autorizado da intimidade sexual

Art. 216-B.  Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.

 

Ricardo alegou que que o delito do art. 216-B do CP é crime de ação pública condicionada, tendo em vista que a previsão contida no art. 225 do CP (ação penal pública incondicionada) abrange exclusivamente os crimes definidos nos Capítulos I e II, do Título VI, não fazendo referência ao Capítulo I-A, no qual se situa o crime do art. 216-B:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.

 

O réu sustentou que há uma lacuna legal e que, diante do princípio do favor rei, deve ser suprida de modo a concluir que o crime do art. 216-B se processa mediante ação pública condicionada.

Logo, como a representação foi oferecida após o prazo de seis meses, concluiu que teria ocorrido a decadência, na forma do art. 38 do CPP:

Art. 38.  Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

Parágrafo único.  Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

A Lei nº 13.718/2018 converteu a ação penal de todos os crimes contra a dignidade sexual em delitos de ação pública incondicionada (art. 225 do Código Penal).

Posteriormente, a Lei nº 13.772/2018 criou um novo capítulo no Código Penal, o Capítulo I-A, e dentro dele o delito do art. 216-B (Registro não autorizado da intimidade sexual). Ao criar esse novo capítulo, no entanto, deixou-se de acrescentar sua menção no art. 225 do Código Penal, o qual se referia aos capítulos existentes à época da sua redação (Capítulos I e II).

Para o STJ, contudo, mesmo com essa omissão legislativa, conclui-se que o crime de registro não autorizado da intimidade sexual se trata de ação penal pública incondicionada. Isso porque, inexistindo menção expressa (seja no capítulo I-A, seja no art. 216-B) de que se trata de ação privada ou pública condicionada, aplica-se a regra geral do Código Penal: no silêncio da lei, deve-se considerar a ação penal como pública incondicionada. Isso está no art. 100 do CP:

Art. 100. A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

 

Assim, não se pode perder de vista que a regra geral da legislação criminal é a ação penal pública ser incondicionada, sendo pública condicionada, ou privada, apenas se houver previsão expressa nesse sentido pelo legislador.

Dessa forma, ao considerar o delito de registro não autorizado da intimidade sexual como delito de ação penal pública incondicionada, inexiste a alegada decadência do direito de representação.

 

Em suma:

O delito de registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B do CP) possui a natureza de ação penal pública incondicionada.

STJ. 6ª Turma. RHC 175.947/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 25/4/2023 (Info 772).


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