sexta-feira, 30 de junho de 2023

Um terceiro, que não é réu no processo, pode apresentar reconvenção contra o autor? Neste caso, ele se torna parte na demanda principal?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João decidiu abrir um restaurante da franquia X.

Ele celebrou contrato de franquia com a empresa Alfa Franqueadora Ltda, responsável pela marca.

Após algum tempo, João ajuizou ação contra a franqueadora pedindo para anular o contrato sob o argumento de que a empresa não prestou a assessoria prometida nem cumpriu com as demais obrigações contratuais.

Citada, a franqueadora apresentou contestação na qual também formulou pedido reconvencional.

A franqueadora formulou reconvenção em face do autor pedindo para que ele fosse condenado ao pagamento das seguintes verbas: 1) multa contratual; 2) taxa de royalties; 3) dívidas decorrentes de produtos adquiridos para abastecer a loja.

Até aí tudo bem. O aspecto interessante foi que essa reconvenção foi proposta não apenas pela Alfa Restaurantes Ltda (ré). A reconvenção foi também proposta pela Alfa Distribuidora de Alimentos Ltda., empresa do mesmo grupo, mas responsável pela distribuição dos alimentos para a rede. Os valores decorrentes dos produtos adquiridos para abastecer a loja eram devidos para a Alfa Distribuidora Ltda.

 

Sentença

Ao final da instrução, o juiz proferiu sentença na qual:

a) julgou procedente o pedido do autor;

b) julgou improcedentes os pedidos reconvencionais.

 

Segundo o magistrado, houve má-condução no planejamento do negócio pela franqueadora.

O investimento exigido do franqueado foi bem superior àquele previsto na circular de oferta da franquia.

Além disso, ficou demonstrado que a franqueada não cumpriu as obrigações previstas no contrato de franquia.

Por essas razões, o juiz declarou resolvido o contrato.

Como houve essa inexecução por parte da franqueadora, o juiz decidiu que o autor não precisava pagar nem a multa nem qualquer outro valor para a ré. Por essa razão, julgou improcedentes os pedidos reconvencionais.

 

Recurso da Alfa Distribuidora de Alimentos

A litisconsorte Alfa Distribuidora de Alimentos interpôs recurso.

Argumentou que o seu pedido foi para que o autor fosse condenado a pagar pelos insumos (alimentos) que ela efetivamente lhe entregou e que ele utilizou no restaurante.

Isentar o autor do pagamento por esses insumos caracterizaria enriquecimento ilícito.

A litisconsorte esclareceu que ela (recorrente) não era a franqueadora e que, por essa razão, não participou do contrato de franquia discutido na ação principal.

Desse modo, a decisão, ao estender os efeitos do contrato de franquia à sua pretensão de ser ressarcida, estaria criando uma hipótese de solidariedade não prevista em lei, nem convencionada pelas partes.

 

Os argumentos da Alfa Distribuidora de Alimentos foram acolhidos?

SIM.

 

Franquia

A franquia empresarial pode ser considerada como o sistema “pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e  administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento” (art. 1º da Lei nº 13.966/2019).

Os contratos de franquia têm natureza de contrato de adesão porque essa espécie negocial é celebrada por adesão do franqueado às cláusulas preestabelecidas pelo franqueador.

A franquia não consubstancia relação de consumo (STJ. 3ª Turma. REsp 1803752/SP, DJe 24/04/2020). Cuida-se, em verdade, de relação de fomento econômico, porquanto visa ao estímulo da atividade empresarial pelo franqueado.

 

Reconvenção

O CPC/2015 inovou no procedimento relativo à reconvenção ao prever que ela deve ser apresentada na própria contestação e não mais de forma autônoma:

Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.

 

Apesar disso, a doutrina anota que “a reconvenção continua a ser uma ação autônoma e não um simples meio de defesa” (THEODORO JR., Humberto. Novo Código de Processo Civil Anotado. E-book.  20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016).

A independência entre a ação principal e a reconvenção é corroborada pelo disposto no art. 343, §2º, do CPC/2015, o qual estabelece que:

Art. 343 (...)

§ 2º A desistência da ação ou a ocorrência de causa extintiva que impeça o exame de seu mérito não obsta ao prosseguimento do processo quanto à reconvenção.

 

O CPC permite que uma parte que não integrava originalmente a lide (ex: Alfa Distribuidora Ltda) possa também apresentar reconvenção?

SIM. Além da ampliação objetiva (ampliação do que está sendo pedido ao Estado-juiz), a reconvenção também pode ocasionar a ampliação subjetiva, por meio da inclusão de um sujeito que até então não participava do processo.

O art. 343, §§ 3º e  4º, do CPC/2015 autoriza que:

• a reconvenção seja proposta contra o autor e um terceiro; ou

• que a reconvenção seja proposta pelo réu em litisconsórcio com terceiro (como foi no caso concreto; a Alfa Distribuidora não era ré e, portanto, era considerado terceiro).

Veja a redação legal:

Art. 343 (...)

§ 3º A reconvenção pode ser proposta contra o autor e terceiro.

§ 4º A reconvenção pode ser proposta pelo réu em litisconsórcio com terceiro.

 

Nessa hipótese em que os polos da ação e da reconvenção não são idênticos, a independência da reconvenção em relação à ação principal ganha ainda mais relevo. Isso significa que o juiz deve examinar cada um dos pleitos (o pedido formulado na inicial e o pedido deduzido na reconvenção), de forma autônoma, sem que haja a indevida atribuição de obrigações à parte que não compõe a relação processual.

Nessa linha, o STJ já decidiu que “cada pedido e cada relação jurídica deve ser analisada separadamente” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.490.073/MG, DJe 28/5/2018).

 

Isso significa que a reconvenção, neste caso, modificou o polo passivo da ação principal? A partir do momento em que a Alfa Distribuidora apresentou reconvenção, podemos dizer que ela também foi incluída como ré no polo passivo da ação principal?

NÃO. Como a reconvenção é autônoma e independente, a ampliação subjetiva do processo promovida pela reconvenção não modifica os polos da ação principal. Assim, as questões debatidas na ação principal continuam restritas às partes que já integravam os polos ativo e passivo da demanda, não se estendendo ao terceiro, que apenas é parte da demanda reconvencional. Em uma simples frase: o terceiro que apresentou reconvenção não se torna parte da ação principal. Em relação à ação principal, ele continua sendo terceiro.

 

Mas... no caso concreto, a Alfa Distribuidora é do mesmo grupo econômico da Alfa Franqueadora. Diante disso, não podemos também dizer que ela faz parte do polo passivo da ação principal?

NÃO. A reunião em um grupo econômico não retira a personalidade jurídica de cada sociedade que o compõe. As sociedades integrantes do grupo mantêm a sua autonomia patrimonial, a qual somente poderá ser desconsiderada quando presentes os pressupostos para a desconsideração indireta da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil). Tanto é assim que o art. 50, § 4º, do CC, introduzido pela Lei nº 13.874/2019, prescreve que a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:

Art. 50 (...)

§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

 

Sendo assim, não é possível atribuir responsabilidade solidária a sociedades empresárias pelo simples fato de integrarem o mesmo grupo econômico.

 

Voltando ao caso concreto:

No caso concreto, não há dúvidas que a recorrente Alfa Distribuidora Ltda não era parte do contrato de franquia, o qual foi celebrado entre João e a Alfa Franqueadora Ltda. Em verdade, a relação da distribuidora com João era de fornecimento de insumos, que, embora imprescindível ao bom desempenho da franquia, não se confunde com a relação negocial de franquia.

O magistrado dispensou João de pagar à distribuidora o valor devido pela compra dos insumos. Dito de outra forma, o juiz estendeu os efeitos da resolução do contrato de franquia à reconvinte (distribuidora), que, reitera-se, não figurava como litisconsorte passiva na ação principal, mas tão somente como litisconsorte ativa na reconvenção.

Ao proceder dessa forma, o magistrado desconsiderou a independência entre as relações jurídicas convencionadas entre franqueadora e franqueado e entre fornecedora de insumos e franqueado, tratando-as como se fossem uma só. Também não foi levado em conta o fato de que a recorrente (distribuidora) não ocupava o polo passivo da ação principal.

Como mencionado anteriormente, a mera alegação de que as empresas compõem o mesmo grupo econômico não sustenta a conclusão do juiz, pois este fato, por si só, não induz solidariedade entre seus integrantes.

 

Em suma:

A reconvenção promovida em litisconsórcio com terceiro não acarreta a inclusão deste no polo passivo da ação principal.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.046.666-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/5/2023 (Info 775).

 

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