Dizer o Direito

domingo, 10 de agosto de 2025

É lícita a negativa de cobertura por operadora do plano de saúde de medicamento de uso domiciliar à base de canabidiol não listado no rol da ANS

Imagine a seguinte situação hipotética:

O médico de Ana, uma criança com diagnóstico de autismo, receitou o uso de pasta de canabidiol (2400mg, 0,5 ml a cada 12 horas) para controle dos sintomas.

A mãe pediu à operadora de saúde Unimed o fornecimento do medicamento, mas o pedido foi negado.

O plano de saúde alegou que se trata de remédio para uso domiciliar, fora da lista da ANS, e que não se enquadra nas exceções legais de cobertura obrigatória.

Ana, representada por seus pais, ajuizou ação contra a operadora pedindo que ela fosse obrigada a fornecer o medicamento.

A controvérsia chegou até o STJ.

 

O que foi decidido? A operadora do plano de saúde pode se recusar a fornecer medicamento de uso domiciliar à base de canabidiol não listado no rol da ANS?

SIM.

Em regra, os planos de saúde não são obrigados a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar.

EXCEÇÕES: Mesmo sendo medicamentos de uso domiciliar, os planos de saúde são obrigados a fornecer:

a) os antineoplásicos orais (e correlacionados);

b) a medicação assistida (home care); e

c) os incluídos no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para esse fim.

 

Assim, os medicamentos receitados por médicos para uso doméstico e adquiridos comumente em farmácias não estão, em regra, cobertos pelos planos de saúde. Isso porque, em regra, os planos de saúde (que integram o Sistema da Saúde Suplementar) somente são obrigados a custear os fármacos usados durante a internação hospitalar. As exceções ficam por conta dos antineoplásicos orais para uso domiciliar (e correlacionados), os medicamentos utilizados no home care e os remédios relacionados a procedimentos listados no Rol da ANS.

 

O tema é tratado no art. 10, VI, da Lei nº 9.656/98

O art. 10 lista em seus incisos tratamentos, procedimentos e medicamentos que os planos de saúde não são obrigados a fornecer.

O inciso VI afirma que, em regra, o plano de saúde não é obrigado a fornecer medicamentos para tratamento domiciliar, ressalvado o disposto no art. 12, I, “c” e II, “g” da Lei.

O art. 12, I, “c” e II, “g” preveem que os planos de saúde são obrigados a fornecer antineoplásicos orais (e correlacionados). Confira:

Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:

(...)

VI - fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar, ressalvado o disposto nas alíneas ‘c’ do inciso I e ‘g’ do inciso II do art. 12;

 

Art. 12. (...)

I - quando incluir atendimento ambulatorial:

(...)

c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

II - quando incluir internação hospitalar:

(...)

g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

 

Exceção 1: antineoplásicos

Antineoplásicos são medicamentos que destroem neoplasmas ou células malignas. Têm a função, portanto, de evitar ou inibir o crescimento e a disseminação de tumores. Servem, portanto, para tratamento de câncer. Existem alguns medicamentos antineoplásicos que são de uso oral e, portanto, podem ser ministrados em casa, fora do ambiente hospitalar. A lei prevê que esses medicamentos, se prescritos pelo médico como indicados para o tratamento do paciente, devem ser obrigatoriamente fornecidos pelo plano de saúde.

 

Exceção 2: medicação assistida (home care)

Se o paciente está em home care (tratamento domiciliar), o plano de saúde também será obrigado a fornecer a medicação assistida, ou seja, toda a medicação necessária para o tratamento e que ele receberia caso estivesse no ambiente hospitalar.

O home care significa fornecer para o paciente que está em casa o mesmo tratamento que ele receberia caso estivesse no hospital. Se, no hospital, o paciente teria que tomar o remédio “X” a cada 8h, este medicamento deverá ser custeado pelo plano de saúde, tal qual ocorreria se estivesse internado.

Obs: essa exceção é uma decorrência do fato de que o STJ entende que os planos de saúde podem ser obrigados a custear o home care.

 

Exceção 3: outros fármacos que sejam incluídos pela ANS como sendo de fornecimento obrigatório

A norma do art. 10, VI, da Lei nº 9.656/98 é voltada à operadora de plano de saúde, a qual, na contratação, pode adotar tal limitação. Esse dispositivo, contudo, não proíbe que a ANS (“órgão regulador setorial”) inclua determinados medicamentos como sendo de custeio obrigatório no rol de cobertura mínima assistencial, ainda que sejam de uso domiciliar.

 

A conclusão acima exposta não mudou com o § 13 do art. 10, inserido pela Lei nº 14.454/2022

A Lei nº 14.454/2022 inseriu o § 13 no art. 10 da Lei nº 9.656/1998, com a seguinte redação:

Art. 10 (...)

§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:

I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou

II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

 

A nova regra do §13 do art. 10 determina, portanto, que, em alguns casos, os planos são obrigados a cobrir tratamentos que não estão no rol da ANS, desde que haja comprovação de eficácia científica e recomendação técnica. Mas será que essa regra também obriga os planos a cobrir medicamentos de uso domiciliar? O STJ entendeu que não.

O §13 serve apenas para ampliar a cobertura de tratamentos fora do rol da ANS, mas não tem força para modificar ou eliminar as regras já existentes que excluem certos itens, como os medicamentos usados em casa (medicamentos de uso domiciliar), da obrigação dos planos de saúde.

Se o Poder Judiciário obrigasse os planos a fornecer todo e qualquer medicamento eficaz prescrito por um médico, inclusive os de uso domiciliar, isso iria contra o equilíbrio financeiro dos contratos e desrespeitaria a própria lei, que foi clara ao excluir esses medicamentos da cobertura obrigatória (salvo em casos excepcionais previstos em lei ou contrato).

Assim, a regra do §13 do art. 10 não modifica o entendimento anterior que exclui, de forma expressa, os medicamentos de uso domiciliar da cobertura obrigatória.

 

Planos de saúde não são obrigados a cobrir medicamentos de uso domiciliar, como o canabidiol, salvo exceções legais expressas

A forma de administração do medicamento (no caso, domiciliar) é determinante para caracterizar a exclusão da cobertura obrigatória. Assim, ainda que o canabidiol tenha sua eficácia reconhecida para o tratamento do transtorno do espectro autista, o fato de ser de uso domiciliar e não se enquadrar nas exceções legais (como internação domiciliar, tratamento oncológico, contrato específico ou norma regulamentar) afasta a obrigatoriedade de custeio por parte da operadora.

A cobertura obrigatória se aplicaria, por exemplo, se o medicamento fosse administrado durante internação domiciliar substitutiva da hospitalar, ou se exigisse supervisão direta de profissional de saúde, o que não era o caso.

Ainda que haja jurisprudência favorável à cobertura do canabidiol pelos planos de saúde, o STJ esclareceu que tais decisões não tratavam da especificidade de sua administração em ambiente domiciliar, o que muda o enquadramento jurídico.

 

Em suma:

É lícita a negativa de cobertura por operadora do plano de saúde de medicamento de uso domiciliar à base de canabidiol não listado no rol da ANS.

STJ. 3ª Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17/6/2025 (Info 855).


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