sábado, 9 de agosto de 2025
Só cabe penhora do bem de família dado em hipoteca se a dívida beneficiar a entidade familiar
Espécies
de bem de família
No
Brasil, atualmente, existem duas espécies de bem de família:
a) bem de família convencional ou voluntário (arts.
1711 a 1722 do Código Civil);
b) bem de família legal (Lei nº 8.009/90).
Bem
de família legal
O
bem de família legal consiste no imóvel residencial próprio do casal, ou da
entidade familiar.
Considera-se
residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para
moradia permanente.
Na
hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis
utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor,
salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e
na forma do Código Civil (bem de família convencional).
Proteção
conferida ao bem de família legal
O
bem de família legal é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de
dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída
pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele
residam, salvo nas hipóteses previstas na Lei nº 8.009/90.
Imagine agora a seguinte situação hipotética:
João e Regina, casados em comunhão parcial de bens, são
sócios da empresa Frutaria do Vale Ltda.
Em 13/06/2016, a empresa contratou um empréstimo com o Banco
Alfa, emitindo uma Cédula de Crédito Bancário. Como garantia, João e Regina
ofereceram em hipoteca o imóvel onde residem com a família.
Ocorre que a dívida não foi paga.
Diante da inadimplência, o banco moveu execução contra a
empresa devedora e os sócios (João e Regina), indicando o imóvel residencial
como bem a ser penhorado.
Após a citação, João e Regina alegaram que que o imóvel era
o único bem imóvel do casal e servia de moradia familiar, pedindo o
reconhecimento da impenhorabilidade prevista no art. 1º da Lei nº 8.009/1990:
Art. 1º O imóvel residencial
próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra
natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus
proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
O juízo de primeira instância indeferiu o pedido,
determinando a penhora com base no art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90, que permite
a penhora do bem de família quando oferecido como garantia hipotecária:
Art. 3º A impenhorabilidade é
oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária,
trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
V - para execução de hipoteca
sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade
familiar;
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
Ainda inconformados, João e Regina interpuseram recurso
especial.
Argumentaram que o imóvel é sua residência e que a dívida
foi contraída pela empresa, sem benefício direto à família.
Alegaram que o banco não comprovou o contrário, ou seja, o
banco não comprovou que a dívida contraída pela empresa gerou benefício à
família. Logo, deveria ser reconhecida a impenhorabilidade.
O STJ acolheu os argumentos de João e Regina?
NÃO.
Exceção do inciso V do art. 3º da Lei do Bem de Família
O bem de família legal (Lei nº 8.009/1990) tem como
finalidade proteger o imóvel urbano ou rural destinado à residência da família,
excluindo-o da possibilidade de penhora, ao lado dos demais bens que compõem o
patrimônio do devedor.
Trata-se de uma proteção conferida pelo Estado, com
fundamento em norma de ordem pública, que se aplica automaticamente (ex lege),
bastando que o imóvel se destine à moradia familiar.
Essa proteção representa a efetivação do direito fundamental
à moradia, ao preservar determinado bem essencial à subsistência da família do
devedor. Assim, embora a obrigação e a responsabilidade patrimonial permaneçam,
parte do patrimônio (o imóvel residencial) é resguardada da execução judicial,
garantindo a dignidade da entidade familiar.
Contudo, a proteção conferida ao bem de família não é
absoluta.
O art. 3º da Lei nº 8.009/1990 prevê hipóteses em que essa
impenhorabilidade pode ser relativizada, especialmente diante da presença de
outros interesses juridicamente relevantes, como a natureza da dívida ou o
contexto da relação jurídica que a originou.
Veja o que diz o inciso V:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível
em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou
de outra natureza, salvo se movido:
(...)
V - para execução de hipoteca sobre o
imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
Esse inciso V diz que o bem de família pode ser penhorado se
o imóvel foi oferecido em hipoteca como garantia real pelo casal ou pela
entidade familiar.
A hipoteca é uma espécie de direito real de garantia,
disciplinada nos arts. 1.473 a 1.505 do Código Civil. Se a parte que deu o bem
em hipoteca não cumprir a sua obrigação, o credor poderá executar a hipoteca,
hipótese na qual o imóvel dado em garantia será alienado e o valor obtido
utilizado para pagar o débito.
A exceção prevista no art. 3º, inciso V, da Lei nº
8.009/1990 aplica-se exclusivamente às situações em que a dívida foi contraída
em benefício da entidade familiar
O STJ ao interpretar esse inciso
V do art. 3º, faz a seguinte distinção:
1) Se o imóvel foi dado em garantia de uma dívida que beneficiou o
casal ou entidade familiar: |
2) Se o imóvel foi
dado em garantia de uma dívida que beneficiou um terceiro: |
Este bem poderá ser penhorado. A situação se enquadra no inciso V do art. 3º. |
Este bem NÃO poderá ser penhorado. A situação NÃO se enquadra no inciso V do art. 3º. |
Ex: Antônio toma um empréstimo junto ao banco (contrato de
mútuo) a fim de pagar a faculdade de sua filha. Ele oferece o seu apartamento
em hipoteca como garantia da dívida. Se Antônio deixar de pagar as
prestações, o banco poderá executar a hipoteca, ou seja, vender o apartamento
e utilizar o dinheiro para quitar o saldo devedor. Trata-se de situação que se enquadra no inciso V do art.
3º (é uma exceção à proteção do bem de família). |
Ex: Carlos toma um empréstimo junto ao banco a fim de
pagar tratamento médico de seu filho. Ele precisava dar uma garantia real
para o caso de não pagar as parcelas do mútuo. Como não tinha nenhum bem para
oferecer em garantia, pediu ajuda a seu amigo Pedro. Assim, Pedro ofereceu a
sua casa em hipoteca como garantia de uma dívida de terceiro (Carlos). Se Carlos não conseguir pagar as parcelas combinadas, o
banco NÃO poderá executar a hipoteca e vender a casa. Isso porque se trata de
bem de família e NÃO se enquadra na exceção do inciso V do art. 3º. |
Desse modo, para a jurisprudência do STJ, a exceção prevista
no art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90 não se aplica aos casos em que a hipoteca é
dada como garantia de empréstimo contraído em favor de terceiro, somente quando
garante empréstimo tomado diretamente em favor do próprio devedor.
Essa é a primeira parte da tese do Tema 1.261:
I) A exceção à impenhorabilidade do bem de família
nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real
pelo casal ou pela entidade familiar, prevista no art. 3º, V, da Lei n.
8.009/1990, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em
benefício da entidade familiar.
STJ. 2ª
Seção. REsp 2.093.929-MG e REsp 2.105.326-SP, Rel. Min. Antonio Carlos
Ferreira, julgados em 5/6/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1261) (Info 855).
O oferecimento de garantia e posterior alegação de
impenhorabilidade configura comportamento contraditório (venire contra factum
proprium)
Ainda que a
impenhorabilidade do bem de família tenha por finalidade a proteção da entidade
familiar como um todo (e não apenas do devedor), a confiança legítima criada no
credor pela atuação da própria família pode justificar a eficácia da garantia
constituída.
Quando o casal ou a
entidade familiar oferta o imóvel residencial como garantia real, eventual
tentativa posterior de afastar os efeitos da hipoteca representa comportamento
em desacordo com a conduta anterior, em afronta à boa-fé objetiva.
O princípio do
venire contra factum proprium impede a adoção de conduta contraditória que
frustre a confiança legítima do outro contratante, constituindo um limite ao
exercício de direitos subjetivos, inclusive potestativos. Trata-se, portanto,
de vedação ao uso abusivo do direito, em especial da prerrogativa de invocar a
impenhorabilidade de um bem oferecido em garantia.
É importante
destacar que, embora a proteção ao bem de família decorra de norma de ordem
pública voltada à tutela da moradia (direito fundamental), sua aplicação não
pode comprometer a segurança jurídica das relações contratuais.
Nesse contexto, o
reconhecimento da exceção à impenhorabilidade deve observar interpretação
restritiva, incidindo apenas quando demonstrado que a dívida garantida foi
contraída em benefício da entidade familiar. Esse é o entendimento prevalente
na jurisprudência do STJ, que busca harmonizar a função social da moradia com a
estabilidade das garantias reais válidas e eficazes.
Ônus da prova de
que a dívida se reverteu em favor da família
Se o bem de família foi dado pelo casal como garantia de dívida
contraída por pessoa jurídica, ele poderá ser penhorado em caso de
inadimplemento?
Depende:
1) Se apenas um dos cônjuges for sócio da
pessoa jurídica: em regra, o bem será impenhorável |
2) Se os cônjuges forem os únicos sócios da pessoa jurídica devedora: |
O bem de família é IMPENHORÁVEL quando for dado em
garantia real de dívida por um dos sócios da pessoa jurídica, cabendo
ao credor o ônus da prova de que o proveito se reverteu à entidade familiar. |
O bem de família é PENHORÁVEL quando os únicos sócios da
empresa devedora são os titulares do imóvel hipotecado, sendo ônus dos
proprietários a demonstração de que não se beneficiaram dos valores
auferidos. |
Ex: Lúcio e Carla são casados e moram em um apartamento
com os filhos. Lúcio é sócio da empresa LT. O outro sócio é seu amigo Tiago. A empresa LT contraiu um empréstimo para comprar
equipamentos e Lúcio deu em garantia o imóvel em que reside. Ainda que dado
em garantia de empréstimo concedido a pessoa jurídica, é impenhorável o
imóvel (bem de família), já que não se pode presumir que o mútuo tenha sido
concedido em benefício da família. |
Ex: Sandro e Michele, casados entre si, são os dois únicos
sócios da sociedade empresária SM Comércio Ltda. A empresa SM contraiu um
empréstimo junto ao banco (contrato de mútuo). O casal deu o apartamento em
que mora como garantia da dívida (garantia hipotecária). Se o empréstimo não
for pago, o banco poderá executar e penhorar o apartamento. |
Essa é a segunda
parte da tese fixada:
II) Em relação ao ônus da prova:
a) se o bem for dado em garantia real por um dos
sócios de pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus
de comprovar que o débito da pessoa jurídica se reverteu em benefício da
entidade familiar; e
b) caso os únicos sócios da sociedade sejam os
titulares do imóvel hipotecado, a regra é da penhorabilidade do bem de família,
competindo aos proprietários demonstrar que o débito da pessoa jurídica não se
reverteu em benefício da entidade familiar.
STJ. 2ª
Seção. REsp 2.093.929-MG e REsp 2.105.326-SP, Rel. Min. Antonio Carlos
Ferreira, julgados em 5/6/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1261) (Info 855).
Tese jurídica
completa:
I) A exceção à impenhorabilidade do bem de família
nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real
pelo casal ou pela entidade familiar, prevista no art. 3º, V, da Lei n.
8.009/1990, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em
benefício da entidade familiar;
II) Em relação ao ônus da prova:
a) se o bem for dado em garantia real por um dos
sócios de pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus
de comprovar que o débito da pessoa jurídica se reverteu em benefício da
entidade familiar; e
b) caso os únicos sócios da sociedade sejam os
titulares do imóvel hipotecado, a regra é da penhorabilidade do bem de família,
competindo aos proprietários demonstrar que o débito da pessoa jurídica não se
reverteu em benefício da entidade familiar.
STJ. 2ª Seção.
REsps 2.093.929-MG e 2.105.326-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado
em 5/6/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1261) (Info 855).
Caso concreto
É ônus dos proprietários do imóvel a demonstração de que a
família não se beneficiou dos valores auferidos.
No caso concreto, os
proprietários do imóvel são os únicos sócios da sociedade empresária devedora,
motivo pelo qual se presume a penhorabilidade do bem, competindo aos
proprietários demonstrar que o débito da pessoa jurídica não se reverteu em
benefício da entidade familiar.
Dessa forma,
inexistindo elementos nos autos que afastem a presunção de benefício à entidade
familiar, concluiu-se pela manutenção do acórdão do TJ, que reconheceu a
possibilidade de penhora do bem de família oferecido como garantia hipotecária.
