terça-feira, 5 de agosto de 2025
Honorários advocatícios em demandas de saúde contra o Poder Público devem ser fixados por apreciação equitativa, sem aplicação de valores mínimos
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, idoso, foi diagnosticado
com câncer.
O médico que o atende prescreveu
tratamento com uso do medicamento XTANDI 40mg (ENZALUTAMIDA), na quantidade de
120 comprimidos por mês, por prazo indeterminado, com a finalidade de combater
a doença que o assola.
De posse da receita médica, João
dirigiu-se à Secretaria Estadual de Saúde para solicitar o fornecimento do
fármaco.
O órgão, no entanto, negou o
medicamento sob o argumento de que ele “não se encontra padronizado nos
Programas de Assistência Farmacêutica da Secretaria Estadual de
Saúde/Ministério da Saúde”.
Diante da recusa, João ingressou
com ação de obrigação de fazer em face do Estado-membro, objetivando a obtenção
de uma tutela jurisdicional que obrigasse a fazenda pública estadual a fornecer
o medicamento.
O autor atribuiu à causa o valor
de R$148.499,04, que, segundo ele, corresponderia ao custo de 12 meses de
tratamento.
O juiz julgou o pedido procedente determinando que o
Estado-membro fornecesse o medicamento. Além disso, também condenou o réu a
pagar honorários em favor do advogado do autor, arbitrados em R$ 1 mil. Segundo
argumentou o magistrado, nas demandas em que se pleiteia do Estado o
fornecimento de medicamentos, não é possível mensurar o proveito econômico
obtido com a ação, razão pela qual os honorários devem ser arbitrados com base
no critério da equidade, nos termos do art. 85, § 8º, do CPC:
Art. 85 (...)
§ 8º Nas causas em que for
inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da
causa for muito baixo, o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação
equitativa, observando o disposto nos incisos do § 2º.
João apelou impugnando o capítulo
dos honorários, mas a sentença foi mantida pelo TJ/SP.
Ainda inconformado, interpôs recurso especial sustentando
que os honorários deveriam ser fixados entre 10 e 20%, nos termos do art. 85,
§3º, I, do CPC, afastando-se, por conseguinte, a regra da equidade:
Art. 85 (...)
§ 3º Nas causas em que a Fazenda
Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios
estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais:
I - mínimo de dez e máximo de
vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido até
200 (duzentos) salários-mínimos;
(...)
O argumento de João quanto aos
honorários está de acordo com a jurisprudência atual do STJ?
NÃO.
Distinção entre demandas
públicas e privadas
O STJ firmou jurisprudência no
sentido de que, em ações contra operadoras privadas, o valor da prestação
(medicamento, serviço ou tecnologia) integra a base de cálculo dos honorários
advocatícios. Nesse sentido: STJ. Corte Especial. EREsp 1.866.671.
A situação, contudo, é diferente
no caso de ações contra o Poder Público.
O CPC/2015 estabelece, no art.
85, § 2º, que a forma preferencial de fixação dos honorários deve ser um
percentual sobre o valor da condenação ou sobre o proveito econômico obtido. No
entanto, essa regra não se aplica às ações de saúde contra o Estado.
Nas ações que buscam prestações
de saúde, a decisão judicial de procedência é condenatória: ordena o
cumprimento de uma obrigação de fornecer a terapêutica (procedimento,
medicamento ou tecnologia) buscada. Trata-se de obrigação de fazer ou de dar
coisa incerta - dispensar medicamento, realizar exame ou intervenção etc.
As prestações em saúde têm
conteúdo econômico. Os profissionais liberais e empresários que fornecem esses
produtos e serviços cobram preços. No entanto, o conteúdo econômico da
prestação não se transfere ao patrimônio do autor, de modo que o objeto da prestação
não pode ser considerado valor da condenação ou proveito econômico obtido.
Dispõe a Constituição Federal que
a “saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196). A ordem judicial
concretiza esse dever estatal, individualizando a norma constitucional. A
terapêutica é personalíssima - não pode ser alienada, a título singular ou
mortis causa. Não há uma integração ao patrimônio jurídico do beneficiado. A
sentença, portanto, simplesmente direciona o dever do Estado de fazer frente ao
direito à saúde do requerente.
A prestação que se busca é de
cunho existencial, sem que o montante econômico possa ser considerado como
valor da condenação. Na linha dos precedentes mencionados, trata-se de uma
condenação que não equivale a proveito econômico ao vencedor do processo. Dessa
forma, o valor da prestação em saúde não serve como base de cálculo dos
honorários advocatícios sucumbenciais.
Ou seja, nas demandas contra o
Poder Público buscando prestações em saúde, a hipótese legal preferencial -
arbitramento sobre o valor da condenação - deve ser descartada.
Sucessivamente, a lei prevê que a
verba deve ser arbitrada com base em percentual sobre o valor da causa.
O valor da causa poderia servir de base de apuração dos
honorários advocatícios.
No entanto, o § 8º do art. 85
dispõe que, nas causas de valor inestimável, os honorários serão fixados por
apreciação equitativa.
É nesse terceiro caso que se
enquadram as ações que buscam prestações em saúde do Poder Público. Como visto,
o preço da terapêutica não se traduz em proveito econômico ao postulante. O
valor, alto ou baixo, do custo do procedimento, medicamento ou tecnologia
buscado é uma questão importante, mas não é essencial ao conflito sub judice.
A equidade é um critério
subsidiário de arbitramento de honorários. Toda a causa tem valor - é
obrigatório atribuir valor certo à causa (art. 291 do CPC) -, o qual poderia
servir como base ao arbitramento. Os méritos da equidade residem em corrigir o
arbitramento muito baixo ou excessivo e em permitir uma padronização,
especialmente nas demandas repetitivas.
Essas duas preocupações se
projetam perfeitamente às ações de saúde. Trata-se de assunto que se repete em
grande número de processos, e no qual a condenação não corresponde a um
proveito econômico.
Logo, o critério preferencial
para o arbitramento dos honorários advocatícios em ações de saúde é a equidade,
por aplicação do art. 85, § 8º, do CPC.
Essa conclusão não é modificada pelas alterações promovidas
pela Lei n. 14.365/2022, em vigor a partir de 2/6/2022, que introduziu os §§
6º-A e 8º-A no art. 85 do CPC:
Art. 85 (...)
§ 6º-A. Quando o valor da
condenação ou do proveito econômico obtido ou o valor atualizado da causa for
líquido ou liquidável, para fins de fixação dos honorários advocatícios, nos
termos dos §§ 2º e 3º, é proibida a apreciação equitativa, salvo nas hipóteses
expressamente previstas no § 8º deste artigo.
(...)
§ 8º-A. Na hipótese do § 8º deste
artigo, para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz
deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos
Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de
10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for
maior.
O § 6º-A impede o uso da equidade, “salvo nas hipóteses
expressamente previstas no § 8º deste artigo”. Como estamos diante de caso de
aplicação do § 8º, essa vedação não se aplica.
O § 8º-A, por sua vez, estabelece
patamares mínimos para a fixação de honorários advocatícios por equidade. Os
honorários seriam o maior valor entre a recomendação da tabela do Conselho
Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil e o limite mínimo estabelecido no §
2º.
No entanto, a interpretação do
dispositivo em questão permite concluir que ele não incide nas demandas de
saúde. A aplicação do § 8º-A prejudicaria o acesso à jurisdição e oneraria o
Estado em área sensível, na qual os recursos já são insuficientes.
Em muitas das causas, o valor da
prestação buscada é elevado. O autor teria que avaliar o risco de litigar e, em
caso de sucumbência, arcar com os honorários correspondentes. Isso imporia à
pessoa, premida por uma situação de doença grave, a escolha entre litigar
contra o Estado, arriscando a sucumbência que dilapidaria seu patrimônio, ou
sofrer com a falta da prestação.
Nos casos em que o Poder Público
é vencido, o estabelecimento de verbas sucumbenciais vultuosas onera o Estado
em setor para o qual a insuficiência dos recursos é notória. Em sua quase
generalidade, as ações judiciais buscam que se abra brecha na política pública,
a qual nega o acesso a determinada terapêutica, em nome do direito concreto do
postulante à própria saúde. Ao direcionar os recursos para o atendimento da
situação da causa, cria-se situação excepcional, a qual reduz a capacidade de
custear a atenção à saúde para o restante da coletividade. Essa situação será
ainda mais agravada se, além do custeio da prestação, forem adicionados
honorários vultuosos.
Além disso, o § 8º-A usa dois
marcos como piso, os quais são estranhos à administração pública. Um deles, é o
§ 2º do art. 85, que não incide na condenação da fazenda pública em honorários,
regida pelo parágrafo seguinte. O outro, a tabela de honorários do Conselho
Seccional da OAB, a qual não se aplica aos advogados públicos e aos defensores
públicos, remunerados por subsídio, na forma do art. 39, § 4º, combinado com
art. 135, da CF. Logo, não há sentido em usar esse dispositivo para reger a
fixação da sucumbência nas ações de saúde, quando direcionadas contra o Poder
Público.
Assim, o § 8º-A do art. 85 do CPC
não deve ser aplicado para ações contra o Poder Público buscando a satisfação
do direito à saúde.
Em suma:
STJ. 1ª Seção. REsps 2.169.102-AL
e 2.166.690-RN, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 11/6/2025 (Recurso
Repetitivo - Tema 1313) (Info 854).
IMPORTANTE: essa tese está
restrita a ações contra o poder público, não abrangendo litígios envolvendo
operadoras privadas de planos de saúde.
