terça-feira, 13 de dezembro de 2022

De quem é a competência para julgar o crime de estupro praticado contra criança e adolescente no contexto de violência doméstica e familiar?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

“M” praticou estupro de vulnerável contra a própria filha, de 4 anos.

Surgiu uma dúvida quanto à competência para julgar esse delito: seria da vara criminal “comum” ou vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher.

O Tribunal de Justiça entendeu que a competência seria da vara criminal “comum”. Isso porque o que teria sido determinante para a prática do crime foi a tenra idade da vítima, não tendo o delito sido cometido em razão do gênero. Logo, não seria possível atrair a incidência da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

O Tribunal local não desconsiderou a presença vínculo doméstico na conduta praticada pelo réu. Todavia, entendeu não haver motivação de gênero na referida prática e priorizou a idade da vítima para afastar a competência da vara especializada.

 

O STJ concorda com esse entendimento manifestado pelo TJ?

Até bem pouco tempo, o STJ estava dividido:

Se o fator determinante que ensejou a prática do crime foi a tenra idade da vítima fica afastada a vara de violência doméstica e familiar? Ex: estupro de vulnerável praticado por pai contra a filha, de 4 anos

SIM

NÃO

Para que a competência dos Juizados Especiais de Violência Doméstica seja firmada, não basta que o crime seja praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, exigindo-se que a motivação do acusado seja de gênero, ou que a vulnerabilidade da ofendida seja decorrente da sua condição de mulher.

Se o fato de a vítima ser do sexo feminino não foi determinante para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, mas sim a tenra idade da ofendida, que residia sobre o mesmo teto do réu, que com ela manteve relações sexuais, não há que se falar em competência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1020280/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 23/08/2018.

A idade da vítima é irrelevante para afastar a competência da vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher e as normas protetivas da Lei Maria da Penha.

O que importa é constatar que não apenas a agressão sexual se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei Maria da Penha, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente - especializado - para processar e julgar a ação penal.

É descabida a preponderância de um fator meramente etário, para afastar a competência da vara especializada e a incidência do subsistema da Lei Maria da Pena, desconsiderando o que, na verdade, importa, é dizer, a violência praticada contra a mulher (de qualquer idade), no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto.

A Lei nº 11.340/2006 nada mais objetiva do que proteger vítimas, contra quem os abusos aconteceram no ambiente doméstico e decorreram da distorção sobre a relação familiar decorrente do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher, elementos suficientes para atrair a competência da vara especializada em violência doméstica.

A prevalecer o outro entendimento, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica - segmento especial e prioritariamente protegido pela Constituição (art. 227) - passariam a ter um âmbito de proteção menos efetivo do que mulheres adultas.

STJ. 6ª Turma. RHC 121.813-RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/10/2020 (Info 682).

 

A questão foi pacificada em embargos de divergência. Qual das duas correntes prevaleceu? Se o fator determinante que ensejou a prática do crime foi a tenra idade da vítima fica afastada a vara de violência doméstica e familiar?

NÃO. Prevaleceu a segunda corrente.

Não se pode afastar a competência da vara especializada e a incidência do subsistema da Lei nº 11.340/2006 unicamente com base no fator etário. Em outras palavras, mesmo a vítima possuindo tenra idade (sendo criança ou adolescente) pode ser aplicada a Lei Maria da Penha.

A Lei nº 11.340/2006 objetiva a proteção de vítimas mulheres contra os abusos cometidos no ambiente doméstico, independentemente da idade. Logo, a competência para julgar o estupro de vulnerável praticado pelo pai contra a sua filha criança ou adolescente, é, em princípio, da vara especializada em violência doméstica.

 

Por que se falou “em princípio”?

Porque, em 2017, foi publicada a Lei nº 13.431/20167, que estabeleceu direitos e garantias para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Esta Lei previu que, nos Tribunais de Justiça, poderiam ser criadas varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Veja:

Art. 23. Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente.

 

Logo, se houver sido criada, a competência para julgar o estupro de vulnerável praticado pelo pai contra a sua filha criança ou adolescente, será dessa vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente (caput do art. 23 da Lei nº 13.431/2017).

Por outro lado, se essa vara ainda não tiver sido criada, a competência para julgar esse crime será da vara de violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme aliás ficou reforçado no parágrafo único do art. 23 da Lei nº 13.431/2017:

Art. 23. (...)

Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins.

 

A partir disso, indago: de quem é a competência para julgar o crime de estupro praticado contra criança e adolescente no contexto de violência doméstica e familiar?

1ª opção: juizado ou vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente (caput do art. 23 da Lei nº 13.431/2017);

2ª opção: caso não exista a vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente, esse crime será julgado no juizado ou vara especializada em violência doméstica, independentemente de considerações acerca da idade, do sexo da vítima ou da motivação da violência (parágrafo único do art. 23 da Lei nº 13.431/2017);

3ª opção: nas comarcas em que não houver varas especializadas em violência contra crianças e adolescentes ou juizados/varas de violência doméstica, a competência para julgar será da vara criminal comum.

 

Diante disso, foi fixada a seguinte tese:

 

Modulação dos efeitos para evita anulação dos crimes julgados em “varas comuns”

Por fim, nos termos do art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil, tendo em vista a alteração da jurisprudência dominante do STJ em relação às ações penais que tenham tramitado ou que estejam atualmente em trâmite nas varas criminais comuns, a fim de assegurar a segurança jurídica, notadamente por se tratar de competência de natureza absoluta, a tese ora firmada terá sua aplicação modulada nos seguintes termos:

a) nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art. 23 da Lei nº 13.431/2017, as ações penais que tratam de crimes praticados com violência contra a criança e o adolescente, distribuídas até a data de publicação do acórdão deste julgamento (inclusive), tramitarão nas varas às quais foram distribuídas originalmente ou após determinação definitiva do Tribunal local ou superior, sejam elas juizados/varas de violência doméstica, sejam varas criminais comuns;

b) nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art. 23 da Lei nº 13.431/2017, as ações penais que tratam de crimes praticados com violência contra a criança e o adolescente, distribuídas após a data de publicação do acórdão deste julgamento, deverão ser obrigatoriamente processadas nos juizados/varas de violência doméstica e, somente na ausência destas, nas varas criminais comuns.

 

 


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