quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

É possível o reconhecimento de parentesco socioafetivo entre irmãos (“irmãos de criação”)?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Pedro são irmãos biológicos. Eles foram criados, desde criança, juntamente com Regina, que não tem qualquer vínculo biológica com os dois.

Assim, os três cresceram juntos, como se fossem três irmãos. Inclusive, João e Pedro sempre apresentavam a todos Regina como sendo sua irmã. Apesar disso, nunca houve qualquer formalização dessa situação.

Regina faleceu.

João e Pedro ajuizaram ação de reconhecimento de vínculo parental socioafetivo “post mortem” contra o espólio de Regina pedindo para que fosse declarado o vínculo socioafetivo fraternal (colateral em segundo grau) entre eles e a falecida.

Assim, os autores propuseram uma ação de reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva post mortem. Queriam que fossem reconhecidos como “irmãos de criação” de Regina.

 

Juiz e TJ/SP

O juízo de primeiro grau extinguiu o processo sem resolução do mérito, sob o fundamento de que o pedido não teria amparo no ordenamento jurídico (impossibilidade jurídica do pedido).

O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença, por entender que a falecida não buscou ser reconhecida como filha dos pais dos autores da ação, o que impossibilitaria o reconhecimento de parentesco colateral socioafetivo unicamente para atribuir direitos sucessórios aos irmãos.

Ainda irresignados, os autores interpuseram recurso especial.

 

O que decidiu o STJ? Esse pedido pode, em tese, ser admitido e julgado procedente?

SIM.

 

Atual concepção de família

A atual concepção de família tem um conceito amplo. A afetividade é, atualmente, considerada como uma fonte de parentesco.

A socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, que prevê:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.

 

Ao falar em “outra origem”, o legislador permite que a paternidade seja reconhecida com base em outras fontes que não apenas a relação de sangue. Logo, permite a paternidade com fundamento no afeto. Assim, a paternidade socioafetiva é uma forma de parentesco civil.

Assim, o afeto solidário ínsito às relações familiares consubstancia, por ele mesmo, fonte de parentesco.

Esse assunto já está pacificado na jurisprudência:

É possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai socioafetivo.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12/4/2016 (Info 581).

 

A afetividade pode gerar o parentesco não apenas em linha reta, mas também na linha colateral

A particularidade do presente caso está no fato de não se tratar de investigação de filiação socioafetiva (paternidade ou maternidade) - hipótese comumente submetida à apreciação do Poder Judiciário -, mas sim do reconhecimento de parentesco colateral em segundo grau, calcado em vínculo socioafetivo fraternal.

O STJ decidiu que isso é possível.

A afetividade pode gerar o parentesco não apenas em linha reta, mas também na linha colateral.

Assim, configurada a afetividade, é possível não apenas o reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva, mas também a fraternidade/irmandade socioafetiva.

Importante, ainda, esclarecer que essa fraternidade/irmandade socioafetiva pode ser reconhecida de forma individual/autônoma, ou seja, mesmo que não se reconheça previamente a parentalidade socioafetiva.

Desse modo, não se visualiza óbice à pretensão autônoma deduzida, calcada na configuração da posse do estado de irmãos. O Juiz agiu de forma prematura ao indeferir a petição inicial, sem que os autores pudessem efetivamente demonstrar os requisitos necessários à caracterização da irmandade socioafetiva.

 

Em suma:

Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário.

STJ. 4ª Turma. Resp 1.674.372-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 04/10/2022 (Info 753).

 

 


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