quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O Estado tem o dever constitucional de assegurar às crianças entre zero e cinco anos de idade o atendimento em creche e pré-escola

                                                                                

O caso concreto foi o seguinte:

Regina tentou matricular sua filha de 3 anos na creche municipal, no entanto, não havia mais vagas disponíveis.

Diante disso, foi ajuizada ação pedindo para que o Poder Judiciário obrigasse o Município a fornecer vaga.

O pedido foi julgado procedente em 1ª instância, tendo sido a sentença mantida no Tribunal de Justiça.

O Município interpôs recurso extraordinário, argumentando que não cabe ao Poder Judiciário interferir nas questões orçamentárias da municipalidade, porque não é possível impor aos órgãos públicos obrigações que importem gastos, sem que estejam previstos valores no orçamento para atender à determinação.

 

O STF manteve a decisão? O Estado (em sentido amplo) tem o dever de assegurar o atendimento em creche e pré-escola?

SIM.

O Estado tem o dever constitucional de assegurar às crianças entre zero e cinco anos de idade o atendimento em creche e pré-escola.

STF. Plenário. RE 1008166/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/9/2022 (Info 1069).

 

Vejamos os principais argumentos expostos no voto do Ministro Relator.

 

A relevância do acesso à educação infantil

A educação infantil, como primeira etapa do ciclo de educação básica, assume relevância singular no início da formação da personalidade humana.

As primeiras experiências de convívio educacional na primeira infância marcam etapas importantes na formação de sua personalidade, bem como da sua socialização e inteligência emocional, contribuindo para o desenvolvimento de capacidades psíquicas, físicas e motoras, em metodologia lúdica que permita o cuidado e a proteção integral das crianças.

Na primeira infância, o acesso à educação infantil de qualidade é essencial para que se busque, mediante o exercício de funções de cuidado, educação e atenção, a formação de componentes imprescindíveis ao desenvolvimento integral das crianças, para que essas possam, de forma ativa, começar a construir conhecimentos sobre si mesmas, bem como sobre o mundo que as cerca.

Nesse contexto, a necessidade de as famílias irem trabalhar fez surgir a necessidade de creches, como estabelecimentos extradomiciliares específicos destinados ao serviço de educação e cuidado para as crianças de primeira infância, enquanto os demais integrantes de suas famílias se afastavam do lar para trabalhar.

 

Agenda 2030

Nesse sentido, destaque-se que a Organização das Nações Unidas (ONU) elenca como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 4 da Agenda 2030 a promoção de educação de qualidade, para assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

De forma mais específica, a meta 4.2 dispõe sobre o compromisso de assegurar a todas as crianças o desenvolvimento integral na primeira infância (0 a 5 anos), mediante acesso a cuidados e à educação infantil de qualidade, de modo que estejam preparadas para etapas posteriores de sua vida escolar.

 

O status constitucional do direito à educação infantil em creches e pré-escolas

O direito à educação é um dos direitos sociais, estando expressamente elencado no art. 6º da CF/88:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

 

A Carta de 1988 estabelece ainda que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família (art. 205), a ser efetivado mediante a garantia de educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade:

Art. 7º (...)

XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas;

 

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...)

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;

 

A legislação infraconstitucional, por seu turno, reafirmou o compromisso da Carta da República com o direito à educação infantil. Nesse sentido, confira o que previu o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

(...)

 

Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

(...)

IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade;

 

Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), expressamente determina:

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

(...)

II - educação infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade;

 

Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:

(...)

V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas (...)

 

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)

 

Art. 30. A educação infantil será oferecida em:

I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;

II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade. (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013).

 

Nota-se, assim, que a educação básica representa prerrogativa constitucional deferida a todos (art. 205), notadamente às crianças (arts. 208, IV, e 227, “caput”), cujo adimplemento impõe a satisfação de um dever de prestação positiva pelo Poder Público, consistente na garantia de acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento em creche e pré-escola.

Com efeito, a universalização desse acesso tem potencial de contribuir substancialmente para a redução de desigualdades sociais e raciais.

 

Papel dos Municípios

A educação infantil é direito subjetivo assegurado no próprio texto constitucional, mediante norma de aplicabilidade direta e eficácia plena, isto é, sem a necessidade de regulamentação pelo Poder Legislativo. Nesse contexto, os entes municipais, por meio de políticas públicas eficientes, são primariamente responsáveis por proporcionar a concretização da educação infantil mediante a adoção de políticas públicas eficientes, que devem alcançar especialmente a população mais vulnerável.

Eventual omissão estatal na matéria revela uma violação direta ao texto constitucional, não se podendo considerar que o oferecimento da educação infantil seja algo que está sujeito a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública.

Existe, portanto, um dever constitucional de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade (art. 208, IV), de sorte que eventual inércia administrativa inaugura a possibilidade de proteção desse direito na via judicial.

 

Possibilidade de intervenção do Poder Judiciário para efetivar esse direito

Extrai-se da jurisprudência a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário mediante determinações à Administração Pública para que efetue a matrícula de crianças em creches e pré-escolas, a fim de realizar a promessa constitucional de prestação universalizada de educação infantil.

A jurisprudência do STF firmou-se pela possibilidade de se exigir judicialmente do Estado uma determinada prestação material com o objetivo de concretizar um direito fundamental.

 

Teses fixadas

1. A educação básica em todas as suas fases — educação infantil, ensino fundamental e ensino médio — constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.

2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo.

3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.

STF. Plenário. RE 1008166/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/9/2022 (Repercussão Geral – Tema 548) (Info 1069).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 548 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, confirmando o acórdão recorrido, para assentar o dever de a municipalidade efetuar a matrícula de uma criança em estabelecimento de educação infantil próximo de sua residência.


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