quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Em caso de morte do cliente titular, os pontos de milhagem aérea são transferidos aos herdeiros?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Determinada companhia aérea possui um programa de fidelidade baseado em pontos/bônus de milhagem aérea. Assim, quanto mais se viaja, mais se acumula pontos e se pode adquirir passagens com essa milhagem.

Ocorre que o regulamento desse programa tem uma cláusula dizendo que se a pessoa que participa do programa falecer, os pontos acumulados se extinguem e não passam para os herdeiros.

Veja a redação da cláusula:

“A Pontuação obtida na forma deste Regulamento é pessoal e intransferível, sendo vedada sua transferência para terceiros, a qualquer título, inclusive por sucessão ou herança, dessa forma, no caso de falecimento do Cliente titular do Programa, a conta-corrente será encerrada e a Pontuação existente e as passagens prêmio emitidas serão canceladas.”

 

Em outras palavras, se a pessoa morrer, as suas milhas não vão para os seus herdeiros.

A PRO TESTE, associação de defesa do consumidor, ajuizou ação civil pública contra essa companhia aérea alegando que essa cláusula é abusiva e pedindo que fosse reconhecido que os herdeiros têm direito de receber esses pontos em caso de falecimento do titular.

 

O STJ concordou os argumentos da autora? Essa cláusula é abusiva?

NÃO.

Antes de se adentrar ao tema propriamente dito da validade ou não da cláusula do regulamento, importante destacar que, atualmente, existem duas formas de acúmulo de pontos.

A primeira é aquela na qual o consumidor ganha os pontos, a título “gratuito”, como um bônus por sua fidelidade na aquisição de um produto ou serviço diretamente contratado com a companhia aérea. Os pontos funcionam como meio de prestigiar o consumidor fiel.

A segunda é aquela na qual o consumidor se inscreve, de maneira onerosa, em um programa de aceleração de acúmulo de pontuação e outros benefícios. É como se fosse um clube premium de benefícios, mas desde que se pague um valor.

O pedido formulado na ACP se volta unicamente contra as cláusulas do primeiro programa.

Feita a diferenciação, passemos à análise dos fundamentos invocados pelo STJ.

 

Contrato de adesão

Inicialmente, importante esclarecer que a adesão ao Regulamento do programa de benefícios instituído pela companhia aérea deve ser considerada como contrato de adesão. Isso porque as cláusulas são estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor do serviço, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo (art. 54 do CDC).

Vale ressaltar, contudo, que nos contratos de adesão não existe ilegalidade intrínseca, razão pela qual só serão declaradas abusivas e, portanto, nulas, aquelas cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, que tragam desequilíbrio de direitos e obrigações típicos àquele contrato específico, que frustrem os interesses básicos das partes presentes naquele tipo de relação, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade, nos termos do art. 51, IV, CDC:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...)

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

 

Contrato unilateral

Apesar de ser um contrato de adesão, o presente pacto também pode ser considerado como um contrato unilateral. Isso porque somente gera obrigações para a companhia aérea.

 

Contrato gratuito/benéfico

A adesão ao regulamento do programa de benefícios também deve ser considerada como sendo um contrato gratuito/benéfico, pois ao passo que gera obrigações somente à instituidora do programa, o consumidor que pretende a ele aderir e dele se beneficiar, não precisa desembolsar nenhuma quantia. Ou seja, pelo fornecimento do serviço de acúmulo de pontos não há uma contraprestação pecuniária do consumidor.

 

Não há desvantagem exagerada

Assim, neste contrato, somente a companhia aérea instituidora do programa assumirá obrigações e o consumidor não pagará nada. Por essa razão, não se tem como dizer que a impossibilidade de transferência dos pontos gratuitos acumulados pelo consumidor, após o seu falecimento, acarretará, aos seus sucessores, excessiva desvantagem apta a ser coibida pelo Poder Judiciário.

 

Interpretação deve ser restritiva

Sendo contrato gratuito, o pacto deve ser interpretado de forma restritiva, nos termos do art. 114 do CC:

Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

 

Contratos gratuitos são intuito personae

Conforme ensina o professor Sílvio de Salvo Venosa, os contratos gratuitos são intuito personae:

“Nos contratos gratuitos, toda carga de responsabilidade contratual fica por conta de um dos contratantes; o outro só pode auferir benefícios do negócio. Daí a denominação também consagrada de contratos benéficos. (...) a pessoa do contratante beneficiado nos contratos gratuitos é tida como essencial. Por isso, tais contratos são intuito personae (o que não impede que existam contratos onerosos personalíssimos, como é curial). (...) Essa classificação é de muita importância, porque cada categoria terá regras próprias. A começar pela interpretação, os contratos benéficos, por disposição do Código, sofrem interpretação restritiva (art. 114; antigo, art. 1.090). Na dúvida, não se amplia o alcance de um contrato benéfico” (Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2º vol., 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005p. 433/434).

 

Conclusões

De forma resumida, de se considerar que:

1) como o consumidor nunca foi obrigado a se cadastrar no mencionado programa de benefícios e tal fato não o impede de se utilizar dos serviços, dentre eles o de transporte aéreo oferecidos pela companhia aérea, ou seus parceiros;

2) quando se cadastrou, de livre e espontânea vontade, era sabedor das regras benéficas que são claras em relações aos direitos, obrigações e limitações; e,

3) como benefício por ele concedido nada paga e sequer assume deveres em face de outros, não há mesmo como se admitir o reconhecimento de abusividade da cláusula que impede a transferência dos pontos bônus após a morte do seu titular.

 

Assim, inexistindo ilegalidade ou abusividade, se o consumidor não concorda com as regras do programa de benefícios, era só a ele não aderir. E se aderiu, deve prevalecer a cláusula rebus sic stantibus.

 

Em suma:

 


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